Era final do ano de 1999, e a carioca Sônia Maria Miller recebia a notícia de que a sexta filha, Samarah, na época com cinco anos, tinha Autismo Severo Não-Verbal. O diagnóstico, que foi demorado e difícil, levou cerca de três anos. “Ela fazia tudo só não falava, fomos à fonoaudióloga, orientados pela pediatra, depois psicóloga, e todos diziam que uma hora ela ia falar. Eu, como mãe, sabia que não iria. Foi na APAE que diagnosticaram o autismo e eu pude entender o que acontecia com a minha filha”, conta Sônia.
A família não aceitou os prognósticos dos pediatras. A mãe e o pai se engajaram em estudar a condição de Samarah, lutando para assegurar uma vida de qualidade à filha. Tardiamente, aos 25 anos, os médicos descobriram que a menina também era portadora da Síndrome de Rett, um raro distúrbio neurológico que prejudica o desenvolvimento motor e intelectual, e que atinge aproximadamente uma em cada 10.000 a 15.000 meninas – a síndrome atinge apenas pessoas do sexo feminino.
Samarah teve acesso aos medicamentos convencionais mais modernos, e, diante das inúmeras reações adversas provocadas pelos alopáticos – e pouca evolução no quadro clínico – os pais optaram por acatar a orientação médica, introduzindo óleos derivados da cannabis no tratamento da filha. Os resultados não foram positivos. As tentativas foram muitas: variadas composições, farmacêuticas e associações. Os medicamentos não surtiram efeito, e quando o THC (Tetrahidrocanabinol) era introduzido, Samarah entrava em colapso emocional.
Quando Sônia, a mãe de Samarah, estava quase desistindo, recebeu uma ligação do médico do médico Moacir Jorge Oliveira: “temos um remédio de última geração, vindo do Canadá, que pode ser uma ótima alternativa para Samarah”. Sônia se mudou do Rio de Janeiro para Florianópolis para iniciar o tratamento. Era a última semana de junho de 2023, e ela estava esperançosa.
Dois dias depois, com o auxílio do time de acolhimento no Brasil da farmacêutica canadense Thronus Medical, a mãe de Samarah conseguiu autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar o primeiro fármaco mundial hidrossolúvel com tecnologia nanomédica à base de cannabis – o medicamento é a última geração de fármacos à base de cannabis sativa disponíveis nos EUA, Europa, Canadá e, mais recentemente, no Brasil
O produto ajudou no controle dos surtos emocionais, na hipotonia muscular – que dificultava a sustentação do corpo, e a ação de deglutir – e também atuou no bem-estar geral da jovem, que sofria com comorbidades como distúrbios de sono.
“Quando Samarah começou a tomar o medicamento, ela não ficava ereta, não conseguia engolir a saliva, e vivia em uma tristeza profunda, apática. Hoje ela anda a cavalo, uma das atividades favoritas dela, com a coluna ereta, passeia e vive com tranquilidade. Fomos de 20 surtos emocionais diários para nenhum em quatro meses de uso. Então eu vejo a cannabis como um pilar para dar estabilidade à vida da minha filha”, conta Sônia.
Os surtos emocionais, em pessoas com necessidades especiais, acontecem em momentos de estresse aumentado, onde o indivíduo não tem capacidade psicológica ou emocional para suportar um estímulo, e entra em colapso emocional.
A rara Síndrome de Rett e a cannabis: evidências científicas
Um estudo observacional longitudinal realizado por uma equipe de pesquisadores de Marselha, na França, investigou se o canabidiol (CBD) poderia ser uma alternativa para o tratamento de pessoas com a Síndrome de Rett.
Foram selecionados 46 pacientes com o transtorno acompanhados por um período de 13 meses contínuos.
Os pacientes receberam uma dose média de 15 mg/kg por dia de Epidiolex,um medicamento que tem CBD isolado na sua composição. Os resultados foram surpreendentes: 70% dos pacientes apresentaram redução na frequência das crises epilépticas. Os resultados variaram de indivíduo para indivíduo, mas é importante destacar que alguns zeraram o número de episódios e outros obtiveram redução superior a 75% na frequência.
“A epilepsia é uma comorbidade da Síndrome de Rett, afetando 70% a 90% dos pacientes e impacta negativamente na qualidade de vida dos pais e cuidadores. Aproximadamente 30% dos pacientes com epilepsia apresentam farmacorresistência.
Os pacientes com SR são vulneráveis e apresentam muitos eventos adversos aos anticonvulsivantes como sonolência, hipotonia, sialorréia e efeitos gastrointestinais”, explica a Dra. Mariana Maciel.
Os resultados foram documentados no artigo “Efficacy and tolerance of cannabidiol in the treatment of epilepsy in patients with Rett syndrome”, concluindo que o CBD mostrou-se efetivo e bem tolerado como terapia adjuvante. Além do controle das crises epilépticas, metade dos pacientes apresentou redução na agitação e/ou ataques de ansiedade, e foi relatada melhora na espasticidade em 40% dos pacientes. “Essa pesquisa aponta para uma possível estratégia terapêutica no tratamento da síndrome de Rett, oferecendo esperança para pacientes e profissionais da saúde”, conclui Dra. Mariana.