Para a família de Sanaa Shah, o verão na Austrália é muito diferente do estilo de vida costeiro despretensioso retratado em guias de turismo.
“Não temos uma praia próxima para onde ir”, diz a jovem de 20 anos.
“Não conseguimos escapar do calor.”
Em vez disso, os dias sufocantes muitas vezes a deixam “trancada dentro de casa” com uma dor de cabeça incapacitante e provocam fortes sangramentos nasais na irmã mais nova dela.
Sanaa (à direita) e a irmã mais nova dela, Lana, moram em uma das ilhas de calor de Sydney. Foto: Sanaa Shah
A casa de Sanaa fica numa região no interior de Sydney, onde as temperaturas podem registrar 10 ºC a mais do que nos bairros que ficam à beira-mar — resultado da geografia da cidade, onde faltam de espaços verdes e abundam superfícies que retêm o calor.
Essa região específica — o oeste de Sydney — tem uma das populações urbanas de crescimento mais rápido do país, bem como taxas de pobreza crescentes.
E os dados meteorológicos mostram que os termômetros já ultrapassam os 35 ºC em pelo menos um de cada 10 dias de verão.
O calor é conhecido como o “assassino silencioso” da Austrália porque é mais mortal do que todos os outros desastres naturais combinados.
O problema é que o fenômeno não deixa evidências claras sobre o tamanho de seu impacto.
Isso porque esse impacto não é sentido de forma igual.
Mais de 60% das mortes relacionadas às altas temperaturas ocorrem em comunidades desfavorecidas como a de Shah, de acordo com uma empresa especializada em modelos climáticos.
Agora, os especialistas dizem que, sem a intervenção do governo, a “desigualdade social” desempenhará um papel decisivo na sobrevivência às temperaturas cada vez mais escaldantes da Austrália.
‘Ilhas de calor urbanas’
A Austrália define uma onda de calor como três ou mais dias consecutivos de temperaturas diurnas e noturnas excepcionalmente altas.
É em meio a essas condições mais quentes que o corpo pode ter dificuldade para se resfriar, o que provoca uma série de problemas, incluindo a insolação, que pode provocar falência múltipla de órgãos se não for revertida a tempo.
Pessoas idosas ou com problemas médicos crônicos correm maior risco — mas qualquer pessoa que não consiga se resfriar pode correr risco de morte.
Segundo dados oficiais, o calor matou quase 300 australianos na última década, com 7 mil necessitando hospitalização.
Mas um estudo da Universidade Nacional da Austrália mostra que há subnotificação nesses números, porque as certidões de óbito não registram informações detalhadas sobre a causa da morte.
Seguindo critérios mais específicos e detalhados, o levantamento estimou que o calor contribuiu para 36 mil mortes na Austrália entre 2006 e 2017.
Grande parte do perigo está relacionada ao que cientistas chamam de “ilhas de calor urbanas”.
O termo descreve as áreas construídas que são cobertas por materiais que amplificam o calor, como o concreto, o asfalto e as fileiras de casas com telhados escuros, que atraem o sol e aumentam a temperatura em seu interior.
O oeste de Sydney — onde vivem 2,5 milhões de australianos — é um exemplo desse fenômeno.
Localizado no sopé das Montanhas Azuis, a região fica protegida das brisas refrescantes que vêm do litoral.
Muitos moradores vivem em edifícios com isolamento inadequado e sentem as pressões do aumento no custo de vida.
Shah diz que o verão pode ser “solitário”, já que muitos indivíduos da comunidade são forçados a “se abrigar em ambientes fechados” ou ficam praticamente dependentes dos aparelhos de ar condicionado.
“Isso por si só é um privilégio, porque muitas pessoas não têm dinheiro para manter o ar condicionado funcionando, então vão à biblioteca ou ao shopping center local para escapar do calor”, explica ela.
Enquanto estuda os impactos das alterações climáticas na universidade, Shah questiona por que seu bairro foi aparentemente construído “na contramão do ambiente local”.
“Temos aqui muitas casas compactas, com telhados escuros, construídas de forma rápida e barata e com isolamento deficiente. E se você dirigir por aí, não verá árvores ou espaços verdes”, descreve ela.
“Não acho que a sustentabilidade a longo prazo tenha sido considerada.”
E ela não é a única a demonstrar tais preocupações.
Quase 50% dos cidadãos entrevistados no maior levantamento da Austrália sobre os impactos das ondas de calor na saúde consideram que os bairros foram construídos de forma a aumentar o calor.
A pesquisa nacional, realizada no ano passado pela ONG Sweltering Cities, também constatou que quase 70% das pessoas relataram sentir-se mal em dias quentes.
A instituição fornece informações às pessoas que vivem em ilhas de calor urbanas sobre onde procurar refúgio em temperaturas extremas ou como utilizar técnicas de refrigeração mais baratas, como coberturas de janelas ou toldos para exteriores.
O que pode ser feito?
As autoridades do país tentam combater o problema. O Gabinete de Meteorologia da Austrália implementou recentemente um sistema de alerta de ondas de calor para alertar as comunidades sobre o clima quente e os riscos para a saúde.
Os governos locais também investem em projetos de regeneração florestal para fornecer mais cobertura verde nas cidades.
Em Melbourne, dois “especialistas em aquecimento” foram nomeados para encontrar maneiras de tornar a cidade mais resistente às intempéries.
Mas Emma Bacon, fundadora da Sweltering Cities, argumenta serem necessárias mais mudanças políticas para um progresso significativo.
Ela defende que o código federal de construção seja atualizado para garantir que dados climáticos atualizados sirvam de guia para o setor de construção, com uma revisão dos planos de emergência para ondas de calor em todos os Estados e uma proibição de telhados escuros em todo o país.
No ano passado, o Estado de Nova Gales do Sul tentou implementar uma legislação para a utilização de telhados de cores mais claras em todas as novas casas para melhorar a eficiência energética.
No entanto, a política foi abandonada devido às preocupações do setor imobiliário de que as mudanças tornariam mais difícil a oferta de habitação a preços acessíveis naquele que já é um dos mercados mais caros do mundo.
Para Bacon, esse foi mais um exemplo da “miopia” de legisladores que não levaram a sério os riscos do calor.
“A forma como planejamos as nossas cidades hoje determina quantas pessoas morrerão nas ondas de calor de amanhã”, diz ela.
“Ao contrário de outros desastres, a segurança em temperaturas extremas depende da aparência da casa e do local de trabalho.”
Há também críticas à dependência que a Austrália tem do carvão e do gás como fonte energética e da economia do país.
Desde que assumiu o cargo no ano passado, o primeiro-ministro Anthony Albanese prometeu reduzir as emissões muito mais rapidamente do que os seus antecessores. No entanto, o governo atual também deu autorização para a abertura de diversas novas minas de carvão.
“Falamos muito mais abertamente sobre as mudanças climáticas do que há alguns anos, mas também continuamos a desenvolver fontes de combustíveis fósseis e, literalmente, a colocar lenha na fogueira”, afirma Simon Bradshaw, pesquisador do Conselho do Clima.
Bradshaw, que estuda condições meteorológicas extremas, alerta que, a menos que a Austrália “se afaste do carvão, do petróleo e do gás” nesta década, “muitas pessoas estarão em breve mais expostas ao calor letal”.
“Vai ficar cada vez mais quente, mas cada tonelada de carbono que deixarmos no solo reduzirá a gravidade das ondas de calor no futuro”, diz ele.
Mas os cortes nas emissões carbono terão de acontecer também nos domicílios, dizem os especialistas — e isso significa ensinar às pessoas formas diferentes de lidar com os dias sufocantes, em vez de apelarem imediatamente ao ar condicionado.
“Não podemos ficar presos neste círculo vicioso, em que respondemos ao clima quente com o uso em larga escala do ar condicionado, alimentado por eletricidade gerada predominantemente por usinas de combustíveis fósseis”, explica o professor Ollie Jay, da Universidade de Sydney.
Jay — que trabalha numa câmara climática construída especialmente para simular ondas de calor extremas — pede que os australianos adotem estratégias para amenizar a temperatura com menos recursos durante o verão.
As estratégias mais eficazes incluem o uso de ventiladores para reduzir diretamente a temperatura do corpo (em vez de focar em baixar o calor no ambiente doméstico todo), molhar a pele ou mergulhar os pés em um balde de água, ou colocar gelo em uma toalha e apoiá-la na nuca.
Esses métodos são apoiados pela Ciência e podem ter um grande impacto na pegada de carbono, assinala Jay.
Mas, fundamentalmente, se trata de estratégias acessíveis e práticas — o que para Bacon e a sua equipe é algo “essencial”.
“Faremos tudo o que pudermos para estar presentes nos subúrbios quentes e manter seguras as comunidades com as quais trabalhamos”, diz.
“Não deveríamos viver num país onde as pessoas morrem em ondas de calor porque são pobres ou vulneráveis”, conclui ele.
Por Hannah Ritchie/BBC News – Sydney
Fotos: Sanaa Shah