A palavra transição traz a ideia de sair de um lugar para outro, de uma mudança que se propõe e, em algum momento, se realiza. Transicionar, o verbo, indica o caminho dessa transformação – e é uma ação bem mais difícil. Em especial para alguém como eu, impactada desde os 11 anos de idade por marcas, pela publicidade e por modelos que me diziam como eu e meu corpo deveríamos ser e agir.
Estou agora no meio de uma transição capilar. Deixei de alisar meus cabelos com químicas e fontes de calor, para que a textura natural e encaracolada que nasceu comigo cresça e prevaleça. Pode parecer pouco ou simples, mas não é. Estou em trânsito entre o que sou (e por mais de vinte anos escondi) e o que quero ser: eu mesma. Se me perguntassem se eu a faria há um ano, minha resposta seria jamais. Foi preciso repensar algumas narrativas históricas e que impactam as mulheres integralmente até hoje.
Assim como em outros aspectos relacionados a padrões de beleza, as expectativas sobre um cabelo liso, brilhante e impecável eram aguçadas, de um lado por meios de comunicação e entretenimento e, de outro, por campanhas publicitárias de marcas de consumo em geral, de beleza até à alimentação. Essas iniciativas são profundamente homogêneas e reducionistas. Elas não levam em consideração a singularidade de cada mulher, de cada realidade e de cada vida. Como pondera Tamara Borovica, pesquisadora da RMIT University, na Austrália, há um esquecimento de como cada corpo “carrega e expressa múltiplos registros de experiências […] e como relações materiais e imateriais são sentidas, carregadas e incorporadas”. Na prática, ao considerar a representação da beleza feminina como um conjunto médio de crenças e imagens que se impõem como ideais, as mulheres tornam-se matéria de exposição sem emoção, sem frizz.
Há muitos exemplos na cultura – e que me atingiram pessoalmente. O filme “O diário de uma princesa”, de 2001, conta a história de uma estudante comum – com cabelos volumosos e ondulados – que descobre que é princesa. No processo de transformá-la em uma “princesa de verdade”, seu cabelo é alisado e seu volume “domado”. Assim como a personagem, interpretada por Anne Hathaway, atrizes como Sarah Jessica Parker, Jennifer Lopes e a cantora Mariah Carey, com cabelos naturalmente cacheados, aderiram o liso chapado.
No Brasil, a campanha da marca Assolan, exibida em 2005, mostrava bebês com cabelos de lã de aço. O jingle ao fundo ressaltava o efeito do produto: “passou, limpou, esfregou brilhou…”. Coincidência ou não, no Brasil, o cabelo crespo é frequentemente comparado de forma pejorativa com esse tipo de produto. Quem nunca ouviu falar “cabelo bombril”? Na mesma época, eu estudava em uma escola em São Paulo e meu apelido se tornou Assolan ou Bombril. Foi a partir daí que eu comecei a alisar meus cachos – horas sentada em uma cadeira embaixo do secador, horas em um salão passando produtos que ardem os olhos e causam descamação do couro cabelo, além da queda e afinamento dos fios.
Assim como eu, os efeitos práticos dessa constatação são sentidos na saúde mental de milhões de mulheres. Um estudo publicado pelo The Women and Equalities Committee revelou que seis em cada dez mulheres sentem-se mal ao pensarem em seus próprios corpos e aparências, com destaque para jovens do sexo feminino: é impossível atender a tantas exigências sobre o que deve ser comum para se viver bem.
A questão da descriminação pela aparência também é fortemente sentida. Nosso estudo “Sem Cabimento” mostrou que 79% das mulheres brasileiras acreditam que os corpos femininos sofrem mais discriminação do que os corpos masculinos. Durante muito tempo, senti o mesmo – acreditava que seria menos “gostável” no âmbito pessoal e menos respeitada no âmbito profissional – especialmente no mercado financeiro, onde trabalhei por alguns anos e onde uma transição como essa era e ainda seria impensável ao meu olhar.
Essa obstinação por um cabelo liso me fez deixar de entrar no mar, de sair na chuva, de apreciar momentos – vários momentos. Quando tinha alguma viagem ou evento especial, era uma correria para o salão, para ficar sentada por horas, colocando uma toalha molhada no rosto para não inalar o cheiro forte dos produtos químicos.
Quando saí do mercado financeiro e fundei meu negócio que a vontade de parar de disfarçar minha aparência surgiu. Agora, com alguns anos a mais, com um enorme apoio das pessoas ao meu redor, e depois de vários processos de autoconhecimento, decidi repensar quem sou e deixar o meu “eu” aparecer.
Para ajudar, quando tomei a decisão, procurei produtos e formas de passar pela transição capilar de uma forma mais leve. Para minha surpresa e sorte, encontrei nas redes sociais inúmeras mulheres que já passaram ou estão passando por esse processo. Encontrei perfis de apoio, de dicas e até marcas de cosméticos que estão realmente comprometidas a ajudar as mulheres a se libertarem dos padrões, relembrando e aceitando a beleza verdadeira de suas reais aparências e personalidades.
Isso nos deixa a reflexão sobre o poder dos meios de comunicação na construção e desconstrução de padrões que afetam a vida e a saúde mental de todos nós. Ao mesmo tempo que contribuem fortemente para a construção de ideais de beleza e da “comunização” da aparência física das pessoas, eles podem apoiar a beleza de cada ser, do único, do diferente, do real.
Não é sobre transformar as pessoas em um (e muitas vezes único) ideal. É sobre apoiá-las em suas reais necessidades de ser, de se expressar e se transformar no que quiserem. Se a Anna que se sentou pela primeira vez em uma cadeira para alisar seus cabelos soubesse disso antes, sua trajetória teria sido muito diferente. As vezes, o frizz da vida demora a chegar. Mas essa é uma transição que pode e deve chegar. Para todas nós.