A série polonesa As Mães dos Pinguins, disponível na Netflix, é mais do que um retrato sensível da maternidade: é um convite à reflexão sobre inclusão, preconceitos e os desafios enfrentados por famílias de crianças com deficiência. A produção acompanha quatro mães cujos filhos possuem diferentes condições, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Síndrome de Down e doenças raras, revelando não apenas as dificuldades do dia a dia, mas também a luta constante por direitos e por uma sociedade mais acolhedora.
O título já carrega uma metáfora poderosa. Os pinguins, apesar de serem aves, não voam, mas encontraram uma maneira única de sobreviver e se adaptar ao ambiente. Além disso, são conhecidos pelo instinto de proteção e pelo trabalho em grupo para garantir o bem-estar dos mais frágeis. Essa analogia nos leva a um questionamento essencial: será que nossa sociedade tem se comportado como uma colônia de pinguins, protegendo e acolhendo aqueles que mais precisam?
No Brasil, segundo a Pnad Contínua do IBGE (2022), há cerca de 760 mil crianças de dois a nove anos com algum tipo de deficiência. Esse número salta para 1,7 milhão ao considerarmos adolescentes de até 19 anos. Além disso, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) estima que 1 em cada 36 crianças seja diagnosticada com TEA, o que representa cerca de 5,6 milhões de brasileiros no espectro.
Como se pode perceber, nossa população de pequenos pinguins tem uma grande representatividade no país quando tratamos de números, mas não como pessoas. O que vemos é um cenário em que a inclusão ainda se restringe ao discurso. Acessibilidade não se resume a rampas e banheiros adaptados; trata-se de criar um ambiente onde todas as pessoas possam conviver sem barreiras físicas ou sociais. Na série, fica evidente que o preconceito é um dos principais obstáculos enfrentados por essas mães. Elas precisam lidar com olhares de reprovação, falta de suporte adequado e políticas públicas ineficazes.
O setor privado ainda enxerga a inclusão como um custo, e não como uma oportunidade de atender a um público consumidor que também precisa de produtos e serviços adaptados. Um simples detalhe, como um ambiente sem luzes fortes ou sons intensos, pode ser a diferença entre uma experiência tranquila ou um episódio de sobrecarga sensorial para uma criança autista.
No sistema educacional, a situação também é preocupante. Muitas escolas aceitam matrículas de alunos com deficiência apenas para cumprir a legislação, mas não oferecem suporte adequado. Em As Mães dos Pinguins, vemos como o despreparo das instituições pode isolar ainda mais essas crianças. Por mais que as escolas tentem parecer inclusivas, faltam profissionais capacitados para lidar com as diferenças e não é incomum que os pequenos fiquem isolados uns dos outros sem participar das tarefas didáticas ou recreativas.
Pior, são tratados de forma diferenciada, são diminuídos e incompreendidos. As famílias que contam com melhores condições financeiras contratam Acompanhantes Terapêuticos (ATs) para ficarem com seus filhos na escola. Mas, até isso é polêmico. Enquanto algumas instituições de ensino exigem o AT, outras não permitem sua presença em sala de aula. Para as famílias de classe mais baixa, não há opção e resta apenas agradecer que a escola aceite a matrícula e não expulse a criança.
As políticas governamentais tampouco são diferentes. Vide a recente mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que demonstrou o retrocesso de uma política pública que já é aplicada de maneira equivocada. O BPC só chegava a alguns poucos grupos, pois a maioria não conseguia cumprir os requisitos. Existem, por exemplo, critérios que são subjetivos, como a questão da moradia. Se a pessoa que necessita do BPC mora em um imóvel emprestado pela família, por exemplo, mas que está localizado em uma região considerada nobre, mesmo morando “de favor” o Estado entende que tem dinheiro e rejeita o benefício.
Tratar o BPC tão friamente como mais uma despesa que aumenta o déficit fiscal é algo estarrecedor. Quantas mulheres não se veem obrigadas a abrir mão de sua vida profissional e até pessoal para se dedicarem completamente ao cuidado de seus filhos? Quantas profissionais fazem jornadas exaustivas para cuidar de seu pinguim ao mesmo tempo que tentam pagar as contas? São apenas uma fraude do BPC?
Até no quesito profissional. Quantas empresas têm a sensibilidade de incorporar uma jornada adequada a uma mãe de um pinguim que permita a ela trabalhar e cuidar desta pessoa, que muitas vezes já é um adulto?
A série emociona ao mostrar que, para além das estatísticas, estamos falando de seres humanos que merecem respeito e dignidade. Em uma das cenas mais marcantes, o pequeno Michal, que tem atrofia muscular, confessa à mãe: “Eu tinha medo de você não ser mais feliz depois que eu nasci.” A frase resume o peso do capacitismo em nossa sociedade.
Sim, tratamos nossos pequenos pinguins como números. Seja por capacitismo ou pela falta de empatia, retiramos deles e de seus pais a possibilidade de conviver em sociedade sem se sentirem diferentes ou indesejados e tornamos tudo mais difícil. Mas, o mundo neurodiverso demonstra como a mente humana é poderosa. Quando olhamos as pessoas TEAs, por exemplo, vemos níveis diferentes de suporte e o mesmo indivíduo pode transitar entre eles. Muitos têm superdotação e hiper focos que os tornam grandes especialistas. Mas simplesmente esquecemos estas características únicas.
Se queremos ser uma sociedade verdadeiramente inclusiva, precisamos mudar essa mentalidade. É urgente que empresas, escolas e políticas públicas deixem de enxergar essas crianças apenas como estatísticas e passem a reconhecê-las como cidadãos plenos, com direitos e necessidades que vão muito além de adaptações básicas. A acessibilidade deve ser pensada de maneira ampla, envolvendo desde infraestrutura até treinamento e acolhimento humano.
Nossos pequenos pinguins não precisam de compaixão, mas sim de respeito, oportunidades e de uma sociedade que os aceite como são. Vou além, eles precisam ser olhados como comuns e capazes, dentro daquilo que são capazes, e acreditem, há tantas capacidades ali recolhidas que apenas quem se permite consegue ter a oportunidade de assistir e aprender.
Como sociedade, temos a chance de sermos mais como os pinguins: cuidar uns dos outros, garantir que ninguém seja deixado para trás e construir um mundo onde todas as crianças, com ou sem deficiência, possam crescer sabendo que são amadas, aceitas e respeitadas.
Cabe a nós decidir se continuaremos a medir a inclusão em números frios ou se finalmente enxergaremos essas pessoas (sejam crianças ou adultos portadores de deficiência), bem como suas famílias como parte essencial do mundo que queremos construir. Nós existimos, vamos continuar existindo e crescendo dentro de nossos grupos, com sede de mais oportunidades, empatia e compreensão.
Este “mundo de pinguins” traz enormes desafios aos familiares, surpresas rotineiras que não fomos educados a saber como lidar, mas cada um deles nos faz mais fortes, mais completos, mais empáticos e agradecidos por ter a honra de compartilhar esses momentos. Cada um deles é recheado de um amor sem igual que nos ensina o quão inferiores somos quando nos comparamos a eles. Eles que, dentro de seu mundo, conseguem fazer tudo de forma genuína, verdadeira, profunda e sem rodeios e demagogia, que tanto nos acostumamos no dito “mundo dos normais”.
*Por Valmir de Souza