Em um consultório da Universidade Federal do Paraná (UFPR), uma conversa sensível entre profissionais da saúde e uma família com um filho diagnosticado com Síndrome do X Frágil (SXF) foi o ponto de partida para um projeto que promete transformar a relação dessas famílias com a saúde bucal. Sensível aos desafios enfrentados no dia a dia — desde a escovação dificultada pela hipersensibilidade oral até o desconhecimento generalizado sobre a condição — um grupo de pesquisadores decidiu agir.
A partir dessa experiência e em parceria com o Instituto Buko Kaesemodel, nasceu um projeto ousado e necessário: o desenvolvimento de um material educativo pensado especialmente para pais e cuidadores de pessoas com SXF.
“A ideia surgiu de uma conversa entre minha coorientadora, professora Yasmine Pupo, e representantes do Instituto. O contato com essa família na clínica da UFPR nos ajudou a perceber o quanto ainda falta informação acessível e específica para quem cuida dessas pessoas”, explica a cirurgiã-dentista Rebeca Alves Lins de Albuquerque, idealizadora do projeto e doutoranda em Clínica Odontológica Integrada com ênfase em Pacientes com Necessidades Especiais e Odontopediatria. A iniciativa também conta com a orientação do professor Fabian Calixto Fraiz, pesquisador na área de letramento em saúde bucal, cuja expertise contribui diretamente para a construção de estratégias comunicacionais mais eficazes e inclusivas.
A Síndrome do X Frágil, considerada a causa hereditária mais comum de deficiência intelectual, impõe desafios sensoriais, cognitivos e comportamentais que impactam diretamente os hábitos de autocuidado — e a saúde bucal não escapa disso.
Na infância, a hipersensibilidade tátil pode tornar a simples escovação uma tarefa hercúlea. Já na adolescência, a busca por independência pode gerar resistência. E na vida adulta, a manutenção desses cuidados depende fortemente do apoio contínuo de familiares e cuidadores. “Cada fase da vida exige uma abordagem diferente. É preciso adaptar o cuidado à realidade e à capacidade de cada pessoa com SXF. O respeito à individualidade é essencial”, afirma Rebeca.
Com uma proposta visual, acessível e baseada em evidências científicas, o material em construção pretende ir além das cartilhas tradicionais. Serão incluídas orientações práticas sobre higiene bucal, escolha de escovas e adaptações no ambiente, sempre com atenção especial às dificuldades sensoriais e aos comportamentos desafiadores. Técnicas de reforço positivo e o estabelecimento de rotinas também fazem parte do conteúdo. “Queremos que qualquer cuidador, mesmo sem formação na área da saúde, consiga entender e aplicar as orientações”, destaca Rebeca.
Escuta ativa: o ponto de partida
Antes de colocar qualquer conteúdo no papel, a equipe da UFPR decidiu ouvir quem mais entende da rotina de cuidados: as famílias. Por meio de um questionário online, que está sendo divulgado em redes sociais e serviços de saúde, os pesquisadores buscam entender como vivem essas pessoas, qual o nível de letramento em saúde bucal dos cuidadores e quais barreiras enfrentam para acessar o atendimento odontológico.
“Infelizmente, ainda temos poucos dados oficiais sobre a Síndrome do X Frágil no Brasil. Então, antes de informar, precisamos conhecer. Esse mapeamento é essencial para que o material seja realmente útil e representativo”, afirma.
Mas o impacto esperado vai além da distribuição de um material educativo. A proposta é transformar, de maneira duradoura, a forma como a saúde bucal é encarada no contexto da deficiência intelectual. “Queremos reduzir a ansiedade das famílias e fortalecê-las com conhecimento. Quando o cuidado deixa de ser um momento de estresse e passa a ser parte de uma rotina tranquila, a qualidade de vida melhora — não só no aspecto físico, mas também emocional”, diz Rebeca.
A especialista reforça ainda o papel fundamental dos dentistas no acolhimento e no diálogo com essas famílias. “Mesmo fora do ambiente acadêmico, os profissionais da odontologia podem fazer a diferença ao adaptar o atendimento, oferecer informações individualizadas e, principalmente, escutar com empatia”, pontua.
Parceiro na concepção e desenvolvimento do projeto, o Instituto Buko Kaesemodel tem atuado para garantir que as demandas da comunidade com SXF sejam ouvidas e respeitadas. Para Luz Maria Romero, gestora do Instituto, iniciativas como essa são fundamentais para enfrentar as barreiras cotidianas enfrentadas pelas famílias. “Muitos pais nos relatam o quanto é difícil encontrar profissionais preparados para atender seus filhos. A resistência dos pacientes, aliada ao desconhecimento por parte de alguns dentistas, acaba afastando essas famílias do cuidado contínuo. Projetos como este da UFPR são essenciais porque criam pontes, oferecem informação e, acima de tudo, acolhem essas realidades”, afirma Luz Maria.
O projeto que nasce dentro da universidade é, antes de tudo, um gesto de escuta e acolhimento. Em tempos em que tantas famílias ainda enfrentam o desconhecimento e o despreparo de parte dos serviços de saúde, iniciativas como essa constroem pontes entre o conhecimento científico e o cuidado afetivo — aquele que começa dentro de casa, na hora de escovar os dentes.