O Itamaraty participou da negociação do texto contra ditadura da Nicarágua, mas optou por não aderir a documento assinado por 55 países. O Conselho de Direitos Humanos da ONU preparou um relatório contra os crimes e a repressão capitaneada pelo regime ditatorial de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na Nicarágua configurando crimes contra a humanidade, nesta quinta-feira (02/03).
Enquanto governos — de esquerda e direita — da região se dispuseram a conceder cidadania aos apátridas nicaraguenses, entre eles Argentina, Uruguai, Colômbia, Chile, Equador e México, o Brasil de Lula, apesar do mal-estar que fontes do governo admitem que causam os atropelos antidemocráticos cometidos por Ortega, continua sem se posicionar. A repressão a opositores do governo está sendo ampliada. Numa cruzada de Ortega contra a Igreja Católica, 11 padres já foram levados à prisão, e em fevereiro, o regime decidiu libertar 222 dos 245 considerados presos políticos e deportá-los para os Estados Unidos, fazendo com que eles percam a cidadania nicaraguense por decreto, por “traição á Pátria”.
Jornalistas o líder da equipe, o pesquisador Jan-Michael Simon, foi além: comparou as ações da ditadura com o nazismo. “O uso do sistema de Justiça contra oponentes políticos da maneira que é feito na Nicarágua é exatamente o que o regime nazista fez”, afirmou.
Simon mencionou, por exemplo, a mais recente medida do regime de retirar a nacionalidade de mais de 300 opositores e enviar alguns deles, que eram presos políticos em Manágua, para os Estados Unidos. “Foi exatamente isso que os nazistas também fizeram no passado.”
O relatório divulgado pela comissão, com mais de 40 páginas, oferece um panorama de graves violações de direitos humanos no país centro-americano desde 2018, quando uma mobilização contra uma reforma da Previdência Social catalisou protestos contra o regime e despertou repressão massiva.
O material descreve um padrão de execuções extrajudiciais realizadas por agentes da Polícia Nacional e membros de grupos armados favoráveis ao regime que teriam atuado de maneira conjunta e coordenada durante os protestos –o regime travou investigações.
Há ainda a descrição de casos em que a polícia e agentes do sistema penitenciário torturaram física e psicologicamente opositores detidos. Em alguns episódios, há descrição de violência sexual e de gênero. “O governo tem utilizado a detenção arbitrária como uma ferramenta para silenciar os críticos”, diz um trecho do relatório.
O documento pede que a comunidade internacional haja contra as ações do regime de Ortega, em especial por meio de sanções contra os responsáveis pelas violências e contra instituições nicaraguenses.
Especialistas consultados pelo jornal The New York Times afirmaram que as acusações da ONU podem ampliar as ações contra a ditadura. Isso porque a conclusão de que o regime cometeu crimes contra a humanidade poderia ser usada como argumento para que cortes de quaisquer países julgassem pessoas envolvidas nos casos de violência.
Lula e Ortega
No começo da década de 1980, o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva foi à Nicarágua e esteve em contato com dirigentes políticos de peso da região. Em um jantar na casa do escritor Sergio Ramírez — figura de proa da Revolução Sandinista que derrotou a ditadura de Anastasio Somoza, em 1979, e vice-presidente do primeiro governo de Daniel Ortega (1985-1990) — o brasileiro conheceu, entre outros, o então presidente de Cuba, Fidel Castro.
Mais de 30 anos depois, o retorno de Lula ao Planalto despertou esperanças entre os críticos de Ortega, como Ramírez, alvos da repressão cada vez mais intensa do presidente, que reconquistou o poder em 2007. O silêncio do governo brasileiro sobre abusos do colega nicaraguense, entre eles a política de tirar a cidadania de opositores — repetindo algo que Augusto Pinochet (1973-1990) implementou no Chile — em palavras do escritor, “é tão incompreensível, tão impactante, que se ouve… É constrangedor”.
— Lula conhece muito bem a Nicarágua, e isso torna seu silêncio ainda mais difícil de entender. Eu, pessoalmente, estou desconcertado — admite Ramírez, hoje exilado na Espanha, em entrevista ao jornal O Globo.
Para Ramírez — ele somou à sua cidadania espanhola a colombiana e a equatoriana — que conhece Lula desde que o presidente brasileiro estava avaliando, segundo contou naquele jantar em Manágua, se deveria ou não iniciar uma carreira política, “a única coisa que poderia explicar o silêncio do Brasil seria seu envolvimento em algum tipo de mediação com o governo de Ortega”.
— Mas, que eu saiba, isso não está acontecendo.
De fato, segundo fontes brasileiras, não está. Procurado pelo GLOBO, o Itamaraty não respondeu.
— Lembro que em outra viagem a nosso país, no início da década de 90, Lula participou de um congresso da Frente Sandinista, que tinha perdido uma eleição. Naquele momento, em que nós discutíamos se nossa frente deveria fazer um giro autoritário ou não, o discurso de Lula foi a favor da democracia — comenta Ramírez, vencedor do Prêmio Cervantes de literatura.
O escritor também lembra que as palavras de Lula irritaram Ortega, que, na noite do congresso, não participou de um jantar com o convidado brasileiro.
*Com informações: New York Times / 0 Globo / UOL