Cinco perguntas feitas aos venezuelanos para saber se eles apoiariam a reivindicação de um vasto território em disputa com um país vizinho.
Foi isso que o governo da Venezuela propôs no domingo, 3 de dezembro, ao convocar um referendo sobre o futuro de Essequibo, um território reivindicado pela Guiana e pela Venezuela.
Os venezuelanos aprovaram as propostas do governo do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, que incluem a criação do Estado de Guiana Esequiba como parte do território da Venezuela, além de um plano para conceder cidadania venezuelana aos seus habitantes.
Ao final do dia, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) afirmou que foram contabilizados 10.554.320 votos, sem esclarecer se correspondem ao mesmo número de eleitores ou se são contados como 5 votos por eleitor em referência às 5 diferentes perguntas.
Todas as questões apresentadas receberam apoio de mais de 95%, de acordo com o CNE. Maduro classificou a votação como “um referendo histórico que reergueu a Venezuela” e afirmou que o próximo passo é “recuperar o que os libertadores nos deixaram, a Guiana Essequiba”.
“É uma missão do povo, é uma missão da pátria”, afirmou o presidente Maduro em 8 de novembro, dando novo ímpeto a uma reivindicação de quase dois séculos. No entanto, para a Guiana, não há nada a discutir, e eles pediram a seus cidadãos que não se deixem “amedrontar” pelos eventos no país vizinho.
A Corte Internacional de Justiça (CIJ) ordenou na última sexta-feira que a Venezuela “se abstenha de qualquer ação que altere a situação que prevalece no território em disputa, que a Guiana administra e controla”, embora não tenha proibido a realização do referendo, conforme solicitado pela Guiana.
Enquanto os venezuelanos aprovaram uma consulta que a Guiana denunciou como uma ameaça existencial, resumimos a disputa que envolve ambos os países sul-americanos e explicamos por que o referendo é controverso.
1. O que é Essequibo
Essequibo — também conhecido como Guiana Essequiba — é um território a oeste do rio Essequibo, no norte da América do Sul, que compreende 159 mil quilômetros quadrados. A área é rica em recursos naturais e florestais.
A região é lar de seis das dez regiões que compõem a República Cooperativa da Guiana, bem como de um terço dos seus 800 mil habitantes.
“Essequibo é um território três vezes maior que a Costa Rica, onde vivem quase 300 mil pessoas”, disse o geógrafo guianense Temitope Oyedotun, professor da Universidade da Guiana.
2. Por que o território é tão importante
O Essequibo está localizado no coração do Escudo das Guianas, região geográfica do nordeste da América do Sul que, além de ser uma das formações mais antigas do planeta, é importante por conta de seus recursos naturais e minerais.
Segundo o geógrafo venezuelano Reybert Carrillo, o território compartilha características semelhantes com o vizinho Arco Minero del Orinoco, uma área de exploração de mais de 111,8 mil quilômetros quadrados que possui grandes reservas de ouro, cobre, diamante, ferro, bauxita e alumínio, entre outros.
Em Essequibo fica a mina de ouro Omai, uma das maiores do Escudo das Guianas e uma das maiores fontes de renda da Guiana.
Só entre 1993 e 2005, Omai produziu mais de 3,7 milhões de onças de ouro.
Mas nas águas territoriais da área disputada existe também uma imensa riqueza em petróleo.
De 2015 até agora, a multinacional ExxonMobil e os seus parceiros fizeram 46 descobertas que elevaram as reservas de petróleo da Guiana para cerca de 11 mil milhões de barris, representando cerca de 0,6% do total da produção mundial.
A maior parte das reservas está localizada em um bloco de petróleo e gás de 26 mil quilômetros quadrados conhecido como Stabroek, ao largo da costa atlântica do país, que se encontra parcialmente nas águas territoriais da região disputada pela Venezuela.
As descobertas inesperadas fizeram da Guiana, um país de 800 mil habitantes, uma das economias que mais crescem no mundo e o seu PIB deverá crescer 25% neste ano, depois de ter expandido 57,8% em 2022.
Além dos recursos minerais, Essequibo possui importantes recursos hídricos.
“Existe uma extensa rede de rios como Cuyuní, Mazaruní, Kuyuwini, Potaro, Rupununi”, explica o geógrafo Temitope Oyedotun, da Universidade da Guiana.
3. Qual a origem da disputa e por que se agravou?
Quando a Espanha fundou a Capitania Geral da Venezuela, Essequibo fazia parte da subentidade territorial e, após obter a sua independência em 1811, a Venezuela ficou com o controle da sua soberania.
Mas a situação começou a se complicar quando o Reino Unido assinou um pacto com a Holanda para adquirir cerca de 51.700 quilômetros quadrados a leste da Venezuela.
O tratado não definiu a fronteira ocidental do que viria a ser a Guiana Britânica e é por isso que Londres nomeou o explorador Robert Schomburgk em 1840 para defini-la.
Pouco depois, foi inaugurada a “Linha Schomburgk”, uma rota que ocupava quase 80 mil quilômetros quadrados adicionais.
Quatro décadas depois, foi publicada uma nova versão da Linha Schomburgk que conquistou ainda mais território.
Em 1895, os Estados Unidos intervieram sob a Doutrina Monroe após denunciar que a fronteira havia sido ampliada de “maneira misteriosa” e recomendar que a disputa fosse resolvida em uma arbitragem internacional.
Em 1899, foi emitida a Sentença Arbitral de Paris, decisão favorável ao Reino Unido, com o qual o território ficou oficialmente sob domínio britânico.
Mas quatro décadas depois, foi tornado público um memorando do advogado americano Severo Mallet-Prevost – parte da defesa da Venezuela no Prémio Arbitral de Paris –, no qual denunciava que o prêmio era um compromisso político e que os juízes não eram imparciais.
As revelações de Severo Mallet-Prevost e outros documentos levaram a Venezuela a declarar a sentença “nula e sem efeito” e a reativar a sua reivindicação.
Três meses antes de conceder a independência à Guiana em 1966, o Reino Unido acordou com a Venezuela o Acordo de Genebra que reconhecia a reivindicação da Venezuela e procurava encontrar soluções satisfatórias para resolver a disputa.
Entre 1982 e 1999, ambos os países tentaram resolver a disputa por meio do mecanismo de bons ofícios da ONU, que nunca produziu resultados concretos.
Durante o governo de Hugo Chávez a disputa foi arquivada, em parte devido às boas relações entre o falecido presidente venezuelano e Georgetown.
Mas isso mudou quando dezenas de depósitos de petróleo começaram a ser descobertos nas zonas costeiras da área disputada em 2015.
As tensões entre a Venezuela e a Guiana aumentaram progressivamente desde então.
Agora, porém, os interesses do governo Maduro não são apenas econômicos, mas também políticos.
Os críticos afirmam que o referendo tem um tom nacionalista em uma altura em que serão realizadas eleições presidenciais em 2024 e pouco depois das primárias da oposição, nas quais María Corina Machado foi escolhida como adversária de Maduro.
O partido no poder convocou diversas manifestações de “unidade nacional” para “defender” Essequibo e está tentando envolver figuras do mundo do entretenimento na disputa. A chamada é união nacional.
“É hora de deixar de lado todos os preconceitos, políticos, religiosos ou pessoais”, solicitou o presidente do Parlamento venezuelano, Jorge Rodríguez.
4. O que é pedido no referendo
Em meados de setembro, o Parlamento venezuelano, de maioria chavista, propôs organizar um referendo para consultar os venezuelanos sobre os “direitos” do país sobre o Essequibo.
Um mês depois, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo governo, anunciou que o referendo iria acontecer no dia 3 de dezembro.
Segundo o governo da Guiana, o referendo representa uma ameaça à integridade territorial da Guiana e pediu ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia que o impedisse.
Mas a Venezuela garantiu que “nada impedirá” a sua decisão.
O referendo em questão é composto por cinco questões:
1) Você concorda em rejeitar, por todos os meios, de acordo com a lei, a linha fraudulentamente imposta pela Sentença Arbitral de Paris de 1899, que visa nos privar de nossa Guiana Essequiba?
2) Você apoia o Acordo de Genebra de 1966 como o único instrumento jurídico válido para alcançar uma solução prática e satisfatória para a Venezuela e a Guiana em relação à controvérsia sobre o território da Guiana Essequiba?
3) Você concorda com a posição histórica da Venezuela de não reconhecer a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para resolver a controvérsia territorial sobre a Guiana Essequiba?
4) Você concorda em se opor, por todos os meios, de acordo com a lei, à reivindicação da Guiana de dispor unilateralmente de um mar pendente de delimitação, ilegalmente e em violação do direito internacional?
5) Você concorda com a criação do estado Guiana Essequiba e o desenvolvimento de um plano acelerado de atenção integral à população atual e futura desse território, que inclui, entre outros, a concessão de cidadania e carteira de identidade venezuelana, de acordo com o Acordo de Genebra e o Direito Internacional, incorporando consequentemente esse estado no mapa do território venezuelano?
No início de novembro, o presidente Maduro iniciou uma campanha que descreveu como “pedagógica, alegre e inclusiva” face ao referendo, que inclui aulas de história televisionadas oferecidas por ele próprio, bem como comícios em vários pontos do país onde são distribuídos panfletos ao ritmo do reggaeton.
A sua administração está incentivando os eleitores a responderem “sim” a todas as perguntas, mas não detalhou como criaria o Estado se os eleitores aprovarem as suas propostas.
5. O que dizem os governos de cada país
Para Caracas, trata-se de “recuperar” um território que sempre considerou seu.
A Venezuela considera que o rio Essequibo, no leste da região, é uma fronteira natural reconhecida na época da independência da Espanha.
Mas a Guiana alega que a questão foi resolvida com a Sentença Arbitral de Paris de 1899.
No entanto, Caracas afirma que esta sentença é nula devido às irregularidades constatadas na decisão e também rejeita qualquer interferência da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no assunto.
Em abril deste ano, o tribunal declarou-se competente para julgar o caso, embora qualquer decisão possa levar anos.
A Venezuela não reconhece a jurisdição do tribunal. Apenas reconhece o Acordo de Genebra como o único instrumento válido para resolver o conflito e diz que a disputa deve ser resolvida entre os dois países.
O governo da Guiana vê o referendo de 3 de dezembro como um “plano da Venezuela para tomar o território da Guiana” e diz que considerando “todas as opções” para defendê-lo.
No final de novembro, o vice-presidente do país, Bharrat Jagdeo, anunciou a visita ao país de funcionários do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e não descartou o estabelecimento de bases militares estrangeiras em território guianense.
“Vamos trabalhar com os nossos aliados para garantir que planejamos todas as eventualidades (…) Nunca estivemos interessados em bases militares, mas temos de proteger o nosso interesse nacional”, assegurou.
Maduro, inflexível em sua nova missão, afirma que os diversos setores políticos e sociais de seu país estão unidos em defesa de Essequibo e tem feito reuniões com as Forças Armadas sobre a disputa.
Seu ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, afirmou em 24 de novembro que a disputa “não é uma guerra armada, por enquanto”, mas acusou o presidente da Guiana, Irfaan Alí, de provocar a Venezuela com aparições recentes no território em disputa vestidos de um militar e cercado pelo exército.
Os analistas antecipam um apoio massivo às propostas do governo venezuelano, em um país onde a reivindicação do Essequibo une efetivamente os chavistas e os opositores como nenhuma outra questão.
O resultado do referendo não será vinculativo ao abrigo do direito internacional, mas muitos temem uma nova escalada.
“Que ninguém cometa um único erro. O Essequibo é nosso, cada centímetro quadrado”, alertou o presidente da Guiana, especificando que Georgetown não abrirá mão de um único “centímetro” de seu território.
Por Norberto Paredes/BBC News Mundo