Há 30 anos em discussão no Brasil, a reforma tributária (PEC 45/2019) deverá ser votada ainda nesta semana no plenário do Senado, após ser aprovada na terça-feira (7/11) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.
O governo diz que o objetivo da reforma é simplificar o sistema tributário brasileiro, melhorando o ambiente de negócios e facilitando o crescimento da economia – a discussão é polêmica, porém, pois mexe com os interesses de setores econômicos diversos e de entes federativos, como Estados e municípios.
Alguns parlamentares de oposição, que votaram contra na CCJ, como o senador Sergio Moro (União Brasil), alegam que a reforma “abre as portas para o aumento de tributos” e pedem o estabelecimento de alíquotas máximas.
A proposta foi aprovada em uma primeira votação na Câmara dos Deputados em julho deste ano, mas sofreu alterações significativas pelos senadores.
No plenário do Senado, serão necessários 49 votos favoráveis (3/5 da composição da Casa), para que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) seja aprovada.
Caso isso aconteça, como é esperado, a matéria será devolvida à Câmara para nova apreciação.
Somente se as duas Casas concordarem completamente com o texto, a reforma será então promulgada na forma de emenda constitucional em sessão do Congresso Nacional – a expectativa do governo e do Congresso é de que esse processo possa ser concluído ainda este ano.
No entanto, outras definições, como as alíquotas dos impostos, deverão ficar para 2024.
Mas o que efetivamente muda com a reforma tributária? Entenda em 5 pontos as principais mudanças.
1. Simplificação de impostos
A reforma tributária prevê a substituição de cinco tributos (PIS, Cofins e IPI, de competência federal; e ICMS e ISS, de competências estadual e municipal, respectivamente) por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA).
O IVA é um imposto que incide de forma não cumulativa, ou seja, somente sobre o que foi agregado em cada etapa da produção de um bem ou serviço, excluindo valores pagos em etapas anteriores.
O modelo acaba com a incidência de impostos em cascata, um dos problemas históricos do sistema tributário brasileiro.
Atualmente, mais de 170 países adotam o IVA, entre eles Canadá, Austrália, diversos países membros da União Europeia e emergentes como Índia, além de vizinhos latino-americanos, como México, Colômbia, Chile e Argentina.
O IVA brasileiro será um IVA Dual, dividido em duas partes: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de Estados e municípios.
Com a reforma, a cobrança de impostos deixará de ser feita na origem (local de produção) e passará a ser feita no destino (local de consumo), uma mudança que visa dar fim à chamada guerra fiscal – a concessão de benefícios tributários por cidades e Estados, com objetivo de atrair o investimento de empresas.
Pela proposta, produtos importados devem pagar o IVA da mesma forma que itens produzidos no Brasil, já exportações e investimentos serão desonerados.
Haverá uma alíquota-padrão e outra diferenciada, para atender setores como a saúde. A alíquota geral será definida por lei complementar, após a aprovação da PEC.
O texto proposto pelo relator no Senado prevê ainda uma “trava” para a cobrança dos impostos sobre consumo – um limite que não poderá ser ultrapassado no futuro.
Esse limite será a carga tributária como proporção do PIB (Produto Interno Bruto), na média para o período de 2012 a 2021 – o que seria equivalente a 12,5% do PIB, segundo a Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do Ministério da Fazenda.
Críticos a esse ponto argumentam, porém, que a trava impedirá que, em momentos de crise, o governo promova aumentos temporários de arrecadação.
2. ‘Imposto do pecado’
O Imposto Seletivo, também conhecido como “imposto do pecado”, será uma espécie de sobretaxa, que incidirá sobre a produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Entre esses produtos estão, por exemplo, cigarros e bebidas alcoólicas, com a possibilidade de a cobrança ser estendida também para alimentos e bebidas com alto teor de açúcar.
O Imposto Seletivo será de competência federal, com arrecadação dividida com os demais entes da federação.
Originalmente, o Imposto Seletivo também seria usado para manter a competitividade da Zona Franca de Manaus, mas o relator da reforma no Senado propôs a criação de uma nova Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) para essa finalidade.
Se aprovada, a nova Cide recairá “sobre a importação, produção ou comercialização de bens que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus”, como uma forma de manter a vantagem do polo industrial.
A Zona Franca e o Simples (sistema de tributação simplificada para empresas de pequeno porte) devem continuar como exceções ao sistema, mantendo suas regras atuais – o que é criticado por alguns especialistas, que avaliam os regimes tributários especiais como ineficientes.
3. Cesta básica e cashback
A reforma tributária prevê ainda a criação de uma Cesta Básica Nacional de Alimentos, cujos itens – como arroz, feijão, entre outros – serão isentos de impostos.
Os produtos da cesta serão definidos por lei complementar, que deverá levar em conta a diversidade regional e cultural da alimentação do país.
Haverá ainda uma cesta “estendida” com outros produtos, como carnes e itens de higiene pessoal e limpeza, que terão um desconto de 60% nos tributos para consumidores de baixa renda.
Esse desconto será concedido através da devolução de impostos, chamada de cashback.
A população mais pobre também deve ter direito ao cashback para o imposto cobrado na conta de luz e no gás de cozinha, pela proposta do relator no Senado.
A manutenção da desoneração de parte da cesta básica na reforma tributária é criticada por alguns especialistas.
Eles argumentam que a isenção de impostos reduz a arrecadação do governo e beneficia indistintamente ricos e pobres. Segundo esses analistas, a devolução de impostos é uma política mais barata e mais eficiente para reduzir a injustiça tributária.
Originalmente, a proposta de reforma do governo previa a reoneração da cesta básica e o cashback aos mais pobres. O Congresso, no entanto, optou por um modelo intermediário, com a isenção sendo mantida para alguns itens básicos e o cashback aos mais pobres na cesta “estendida”.
4. Profissionais liberais e outras exceções
Uma novidade introduzida na reforma tributária pelo Senado é a criação de uma tributação específica para serviços prestados por profissionais liberais, como advogados, engenheiros e contadores, equivalente a 70% do valor da alíquota geral.
De última hora, o relator da reforma aceitou ainda exceções que beneficiam bancos, taxistas, clubes de futebol e a indústria automotiva, ampliando a lista de setores privilegiados por alíquotas diferenciadas, que na proposta aprovada na Câmara já incluía segmentos como educação, saúde, instrumentos e equipamentos médicos, medicamentos e itens de saúde menstrual, serviços de transporte coletivo, produtos e insumos agropecuários, atividades artísticas e culturais, entre outros.
O problema das exceções é que, como a reforma pretende ser neutra do ponto de vista da arrecadação de impostos – isto é, a expectativa do governo é continuar arrecadando proporcionalmente o mesmo que arrecada atualmente –, os descontos dados a setores específicos precisam ser compensados com uma alíquota geral maior para todos os demais produtos e serviços.
Em agosto, o Ministério da Fazenda publicou um estudo, estimando que a alíquota-padrão do IVA ficaria entre 25,45% e 27%.
Já no início de novembro, o ministro Fernando Haddad estimou que, com as novas concessões incluídas pelo relator no projeto do Senado, a alíquota poderia chegar a 27,5%, uma das mais altas do mundo – e esse cálculo foi feito antes das exceções de última hora incluídas por Braga.
“É a festa da cocada esse negócio das exceções. A alíquota de referência vai ficar mais alta ainda, com as exceções sendo reforçadas”, disse Felipe Salto, economista-chefe e sócio da gestora de investimentos Warren Rena, em entrevista ao jornal O Globo ao fim de outubro.
Braga reconheceu na terça-feira, durante a votação do texto na CCJ, que a reforma que agora vai ao plenário do Senado não é a ideal.
“O relatório não é uma obra de arte perfeita, mas, na democracia, é a construção do possível”, disse Braga. “Essa é a primeira reforma tributária que o Brasil constrói em um regime democrático, o que é muito difícil”, completou o senador.
5. Tempo de transição
Segundo a proposta de reforma tributária, o período de transição para unificação dos tributos vai durar sete anos, entre 2026 e 2032.
A partir de 2033, os impostos atuais serão extintos. A transição foi prevista para não haver prejuízo de arrecadação para Estados e município.
Pelo cronograma proposto, em 2026, haverá uma alíquota teste de 0,9% para a CBS (IVA federal) e de 0,1% para IBS (IVA compartilhado entre Estados e municípios).
Em 2027, PIS e Cofins deixam de existir e a CBS será totalmente implementada. A alíquota do IBS permanece com 0,1%.
Entre 2029 e 2032, deve haver uma redução paulatina das alíquotas do ICMS e do ISS e elevação gradual do IBS, até a vigência integral do novo modelo em 2033.
Já a transição da cobrança de impostos da origem para o destino deve acontecer em 50 anos, de 2029 até 2078.
Esse longo período de transição divide opiniões entre economistas.
Para Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office, a separação entre as duas transições – da unificação de impostos e da migração da origem para o destino – é o “Ovo de Colombo” da reforma.
“Esta reforma vai mudar muito, para muito melhor, a estrutura tributária. Mas ela mexe na estrutura federativa, em quem recebe e quem deixa de receber. Ela não é neutra do ponto de vista dos Estados”, disse Pessôa, em entrevista à BBC News Brasil em julho.
“Então a ideia, ao separar as duas transições, é dar tempo – muito tempo – para os Estados se adaptarem às novas estruturas de recebimento e também dar tempo para os efeitos benéficos da reforma virarem crescimento econômico.”
Já Salto, da Warren Rena, acredita que o longo período de transição para a unificação de impostos pode significar que a guerra fiscal não tenha fim, prejudicando um dos objetivos da reforma.
Pela proposta da reforma, o IBS será instituído com alíquota de 0,1% em 2026. Até 2028, o novo imposto vai conviver com o ICMS e o ISS sem mudança de alíquotas nos tributos antigos.
A partir de 2029, os impostos antigos começam a ser reduzidos, em 10% ao ano, até 2032. Assim, ao final de 2032, o ICMS e o ISS terão alíquotas equivalentes a 60% das atuais.
“Para que [a tributação] migre para o destino, nós temos que acreditar que não vai haver pressão nenhuma para que esses 60% de ICMS não continuem vigorando além de 2032. Ou seja, que da noite pro dia esse ICMS de 60% vá passar a zero”, disse Salto em julho.
“Isso é um risco porque, ao manter uma alíquota grande para um imposto ruim que enseja benefícios fiscais – o que não é proibido pela PEC –, você pode ensejar a concessão de novos incentivos tributários. Aí há o risco de não termos a migração para o destino nem em uma década”.
Por BBC News Brasil