“A seleção brasileira está ganhando hoje”, comentou uma habituée da Royal Opera House durante os intervalos da performance do balé Don Quixote apresentada na tarde de sábado 28 de outubro. Com música de Ludwig Minkus e coreografia do lendário bailarino cubano Carlos Acosta, a apresentação era um teste de câmera para o show que será exibido ao vivo em 1.281 cinemas espalhados por 34 países nesta terça-feira, 7 de novembro, às 19hs (hora local em Londres). Por uma coincidência, no palco (e consequentemente nas telas) estarão os cinco bailarinos brasileiros que trabalham atualmente na companhia mais prestigiosa do Reino Unido, e uma das mais importantes do mundo.
Os três papeis femininos principais são, respectivamente, da primeira-bailarina carioca Mayara Magri, como a protagonista Kitri, da solista Letícia Dias, também carioca, como Mercedez, e da primeira-solista paulista Isabella Gasparini, como Amour. Integrando o corpo de baile, outra carioca, Letícia Stock, a veterana do grupo, na companhia há 16 anos, e o mineiro Denilson Almeida, o mais novo do grupo, que começou a dançar balé, por incrível que pareça, em uma igreja evangélica.
“Minha mãe era do ministério de dança, e eu ia com ela para as aulas. Enquanto ela fazia balé, eu imitava os passos no altar. O pastor era muito inclusivo, mas claro que tinha preconceito, algumas crianças não falavam comigo, mas eu nem ligava”.
A apresentação não será especial apenas por causa disso. Mayara Magri fará novamente par romântico no palco com seu parceiro de vida: o primeiro-bailarino de Liverpool Matthew Ball, com quem dançou o conto de fadas A Bela Adormecida, de Tchaikovski, no último Dia dos Namorados. Havia especulação de que, naquela ocasião, ele a pediria em casamento no palco, o que Mayara implorou que não acontecesse por achar “muito cafona”.
Os dois só estão dançando juntos, contudo, porque o parceiro de dança original de Mayara nos dois balés, o cubano-canadense Cesar Corrales, se machucou nas duas ocasiões. Outra coincidência.
O show desta terça não está disponível para o público geral, mas apenas para uma plateia formada em sua maioria pelos trabalhadores do NHS (National Health Service, o serviço público de saúde do Reino Unido que inspirou o SUS). Trata-se de uma tradição da Royal Opera House, a maior produtora de balés e óperas do país, oferecer um show exclusivo aos servidores do setor de saúde que nem sempre têm a oportunidade de assistir a um espetáculo deste calibre.
O rei Charles 3º e a rainha-consorte Camilla também devem estar presentes, embora essa informação ainda não esteja confirmada.
A notícia triste
No entanto, nenhuma sala de cinema brasileira demonstrou interesse em exibir o espetáculo. Isso reflete a situação do balé no Brasil, onde falta investimento nas artes clássicas. Não à toa que Mayara afirmou que seria preciso sair do país para se poder viver de balé. E, de fato, há um considerável contingente de bailarinos brasileiros com carreiras de sucesso fora do país.
O Royal Ballet, por exemplo, já teve outras estrelas brasileiras como os cariocas Thiago Soares (primeiro-bailarino de 2006 a 2019) e Roberta Marquez (primeira-bailarina de 2004 a 2015). Pela Europa também brilham no momento Victor Caixeta, de Uberlândia, como primeiro-bailarino no Dutch National Ballet em Amsterdã; Alysson Rocha, do Rio, como diretor artístico do Balé de Dortmund na Alemanha; Reginaldo Oliveira, também do Rio, como diretor artístico e coreógrafo do Teatro de Salzburgo na Áustria; Luiza Lopes Ribeiro, de São Paulo, como primeira-bailarina do Balé Nacional da Suécia; entre muitos outros.
A ponte da transpiração
A maioria dos bailarinos da companhia veio do outro lado da Floral Street, que separa a escola do Royal Ballet do imponente edifício da Royal Opera House, com mais de dez mil metros quadrados de área e que abriga outra companhia, a Royal Opera, além de dez pisos de oficinas de figurinos, adereços, estúdios de balé e o teatro vitoriano inaugurado em 1858. Pelos corredores da companhia circula que os estudantes chamam aquela ponte espiralada que atravessa por cima da rua, batizada de “ponte da aspiração”, de “ponte da transpiração”. A ponte conecta os dois prédios, mas poucos conseguem atravessá-la e entrar para o Royal Ballet. Phillip Mosley, cuja história de vida inspirou o filme Billy Elliot, foi um deles.
Os brasileiros da companhia também parecem ter encontrado o caminho. Mayara Magri, Letícia Dias, Letícia Stock e Denilson Almeida, por exemplo, entraram para o Royal Ballet após ganharem o famoso Prix de Lausanne, que garante aos vencedores uma bolsa de estudos na escola da companhia. Isabella Gasparini teve uma trajetória um pouco diferente: entrou na companhia depois de estudar no Canadá e de dançar profissionalmente por seis anos em outras companhias do Reino Unido.
Mas o que faz os bailarinos brasileiros chamarem tanta atenção das companhias internacionais? Kevin O’Hare, diretor do Royal Ballet, disse à reportagem da BBC que embora não escolha o elenco por sua nacionalidade – e que a presença dos cinco nesta performance não foi premeditada – é impossível não perceber que os “bailarinos brasileiros têm um talento e estilo únicos” e que “eles têm uma alegria que irradia sem muito esforço durante as apresentações”.
O’Hare também acredita que especificamente para Don Quixote a presença de bailarinos latinos traz uma autenticidade inata para a produção e que este é o motivo da popularidade deste balé.
Os cinco brasileiros do Royal Ballet, no entanto, têm opiniões diversas sobre o que os faz diferentes dos outros bailarinos da companhia, que tem cerca de cem bailarinos. Uma opinião comum aos cinco, no entanto, é todos eles têm disposição para aproveitar todas as oportunidades que aparecem.
“Sabe o clichê do ‘sou brasileiro que não desiste nunca’? A gente aceita o desafio. Muitas vezes a gente percebe que as pessoas que nasceram aqui não dão o valor que nós damos, porque a gente sabe da dificuldade, que precisa matar um leão por dia para conseguir chegar aqui. E a gente quer fazer melhor sempre. Quando a gente ganha uma oportunidade, segura com tudo e não dá para trás. Eles sabem que a gente é ponta firme, e eles gostam disso”, diz Mayara Magri.
Letícia Stock, por exemplo, não acredita que seja necessário ser um bailarino latino para dançar bem Don Quixote. Mas, segundo ela, os brasileiros têm muita garra. “Somos muito apegados às nossas famílias, e para morar longe do Brasil é necessário querer muito fazer algo. Também acho que o brasileiro aprende as coreografias mais rápido.”
Para Letícia Dias, os aspectos que diferenciam os brasileiros são “personalidade e cultura”. “Isso ninguém tira da gente. A gente aprende desde cedo a ser sagaz nas mínimas coisas, como, por exemplo correr para pegar um ônibus senão sabe-se lá que horas vai passar outro. Nada para a gente foi fácil, é um país com muitas dificuldades. E é um país com muita música e muita dança.”
Ela repete uma história contada por Mayara sobre a escola onde as duas e Denilson estudaram no Rio, a Petite Danse, que os treinava para dançar em qualquer lugar, de praça de alimentação a shopping center a quadra de cimento de escola pública. Isso, segundo ela, prepara o bailarino brasileiro para qualquer plateia e qualquer palco.
Isabella Gasparini cuja delicadeza em cena lhe rendeu o apelido de “Fada”, é bem direta ao definir o que é que o brasileiro tem: “Vontade! Talvez a gente queira ainda mais porque é uma carreira muito difícil de alcançar [no Brasil]. Acho inclusive que minha recente promoção e desde a minha entrada na companhia como extra é fruto desse ímpeto de agarrar as oportunidades. Sempre que alguém se machucava eu estava pronta, porque me preparo antes para os papeis. Aprendi a estar sempre pronta no Northern Ballet aqui no Reino Unido.”
Segundo ela, os professores brasileiros também são mais exigentes com os bailarinos. “Eles exigem sempre 150% de você. Se está doendo aqui eles mandam parar, dar um tempo. No Brasil, eles mandam tomar Dorflex e continuar”, conta aos risos. “Acredito que isso nos faça mais duros na queda.”
Excelência olímpica
Bailarinos podem ser bem resistentes a quedas. Que o diga Mayara, que caiu nos primeiros minutos de sua primeira performance de Don Quixote desta temporada, quando dividia o palco com primeiro-bailarino português Marcelino Sambé. Levantou e continuou como se nada tivesse acontecido. Executou cada rotina dos três atos com grande precisão, e nada restou à plateia a não ser aplaudir de pé, aos gritos de “brava”. Na saída, os espectadores a chamavam de adjetivos como “poderosa” e “apaixonante”.
“Para cair tem que estar em pé. Acho que é mais traumático para o público do que para a gente. Claro que o ideal é não cair, mas estamos dançando na ponta do pé, saltando, sendo jogados para cima, desafiando a gravidade o tempo todo”, disse ela, que após o show distribuiu autógrafos e selfies sem um arranhão e pronta para comer um bife malpassado com batata frita.
Essa resistência vem da aplicação da ciência do esporte na prática diária dos bailarinos do Royal Ballet, que desde que Kevin O’Hare se tornou diretor da companhia em 2012, são treinados por profissionais que trabalharam com o time olímpico da Grã-Bretanha.
O diretor clínico da companhia, Shane Kelly, explica que como os bailarinos profissionais trabalham com desempenho físico de alto nível, há razões para implementar os serviços oferecidos para o esporte profissional ou olímpico. Entre as especialidades aplicadas, estão medicina da dança, fisioterapia, pilates, giro tônico, massoterapia, nutrição, e reabilitação de balé – uma especialidade que foi desenvolvida em apenas algumas empresas no mundo.
“Há muito poucas companhias que apresentam o nível de serviço prestado aos nossos dançarinos e que sejam líderes mundiais em termos de profundidade e tamanho da nossa equipe de suporte ao desempenho. Eu diria que somos os líderes no setor”, complementa Kelly.
O impacto na carreira dos bailarinos é revolucionário. Lesões que em outros tempos encerrariam carreiras são cada vez mais raras, e poucas vezes os bailarinos necessitam ser encaminhados para fazer tratamento fora da Royal Opera House.
Isabella Gasparini é uma das bailarinas que afirma ter se recuperado de uma lesão grave. “Fiz um tratamento de condicionamento e reforço da musculatura devido a uma sobrecarga de trabalho. Machuquei a tíbia e quando terminei a reabilitação me senti mais forte do que antes da lesão.”
Mayara Magri diz ainda que isso aumentou a longevidade da carreira dos bailarinos, que antes se encerrava em média por volta dos 35 anos. Hoje há uma sobrevida na carreira que pode se estender por dez anos, como é o caso da bailarina espanhola Laura Morera, que se aposentou em junho deste ano aos 45 anos.
Mayara conta que quando entrou no Royal Ballet, 13 anos atrás, havia uma mentalidade de que bailarino devia apenas dançar. “Hoje os bailarinos são mais fortes, atléticos, definidos, conseguem saltar muito mais alto e duram mais. Os meninos vão à academia puxando ferro não para crescer o braço, mas para levantar bailarina acima da cabeça.”
“Ao contrário dos atletas que treinam para uma partida ou evento importante, os dançarinos precisam se apresentar várias vezes por semana. Ter o conhecimento e a investigação científica do mundo dos esportes e alinhá-los com a dança criou, espero, uma abordagem sustentável na forma como cuidamos dos bailarinos”, finaliza Kevin O’Hare.
Por James Cimino
Especial para a BBC Brasil em Londres