Cícero, um dos mais importantes filósofos da Roma antiga, deixou em sua vasta obra uma máxima importantíssima: “Que o bem estar do povo seja a lei suprema”. Lamentavelmente, o ensinamento de Cícero vem sendo ignorado pela maioria dos governantes e políticos brasileiros, em especial nos últimos 20 anos.
Nesse recorte histórico recente, o que se viu foram maus governos e descompromissados líderes políticos, todos mais preocupados em atuar para a manutenção e a ampliação de seus próprios privilégios do que trabalhar em favor da maioria esmagadora da população brasileira, sobretudo a classe média e os mais pobres.
É triste e revoltante ver que os representantes do povo, eleitos pela vontade dele, ignorem as maiores necessidades dos cidadãos, traindo a confiança que lhes foi depositada nas urnas. Nessas duas últimas décadas, enquanto os rendimentos dos políticos só aumentaram, imprimiu-se a asfixia econômica da parcela maior da população. São muitos os exemplos dessa caixa de maldades. A falta de correção da tabela do Imposto de Renda é uma das principais.
De acordo com estudos do Sindifisco Nacional, a defasagem na tabela do IR já é da ordem de 147% a 149%. Se a tabela fosse atualizada de forma a eliminar esse desequilíbrio, o limite de isenção seria elevado dos atuais rendimentos mensais de até R$ 1.903,98 para até R$ 4.702,38. Ou seja, 93% dos trabalhadores com carteira assinada ou que atuam como profissionais autônomos estariam isentos do Imposto de Renda. Esses cidadãos recolhem hoje, compulsoriamente, R$ 273,38 por mês de IR. Por trás do tecnicismo com o qual os governos justificam a não correção está uma verdade nunca dita: com essa prática, o Brasil continua a tributar inflação, fazendo isso sem previsão constitucional e sem lei autorizativa.
Nem mesmo o salário-mínimo tem tido recomposição em índice correspondente à inflação, que segue corroendo o poder de compra do brasileiro. O último exemplo foi o reajuste fixado para 2023, de R$ 1.302,00 para R$ 1.320,00. Isto é: aumentou R$ 18,00, o correspondente a apenas 1,38%, muito pouco para fazer frente à inflação que, em 2022, foi de 5,5%.
Além disso, o brasileiro sofre com a tributação excessiva sobre consumo, incidindo sobre tudo o que é adquirido por cidadãos de todas as classes econômicas. Tudo porque ainda se pratica um sistema tributário injusto e regressivo. Hoje, de 44% a 46% das receitas tributárias dos três entes federativos (União, estados e municípios) advêm do consumo. É o imposto incidente sobre cada produto que se compra no supermercado, na farmácia, no açougue e também sobre o gás de cozinha e a energia elétrica, essenciais a qualquer cidadão.
Por outro lado, as receitas provenientes de tributação do capital e da renda correspondem apenas a 17%-19% do total arrecadado no país. É exatamente o contrário do que acontece nos Estados Unidos e em muitos países do G10, o grupo das nações mais ricas do planeta. Nos EUA, por exemplo, a arrecadação sobre o consumo corresponde a 16%-18% e, sobre renda e capital, soma de 42%-46%.
Como se não bastasse, há anos os trabalhadores brasileiros vêm subsidiando investimentos dos governos federal e estaduais e até as empresas privadas altamente lucrativas e com ações cotadas na Bolsa de Valores. Pode parecer estranho, porém os números explicam. O governo remunera as contas dos trabalhadores relativas ao saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) mediante aplicação da TR e mais 3% ao ano. A poupança, forma mais popular dos trabalhadores guardarem o pouco que lhes sobra, tem remuneração equivalente à TR mais 4% ao ano. Enquanto isso, os banqueiros são remunerados pela taxa Selic, hoje de 13,75% ao ano. O equivalente ao IPCA mais 7% ao ano, ou seja, 7% ao ano acima da inflação.
Não há dúvidas de que esse tratamento discrepante é extremamente injusto. Afinal, os trabalhadores pagam imposto embutido em tudo aquilo que compram e encontram os preços sempre majorados pela inflação e IPCA, no mínimo. Além disso, os aluguéis – igualmente pagos com sacrifício – são majorados pelo IGP-M.
Portanto, a classe trabalhadora que forma a base da pirâmide (renda mais baixa) tem salário-mínimo reajustado em 1,38%, tem seu saldo de FGTS remunerado por taxa bem abaixo do IGP-M, IPCA e Selic, índices usados para o reajuste dos preços dos produtos da cesta básica e dos aluguéis. E ainda paga imposto de renda sobre inflação, apesar de sabidamente inflação não ser renda.
Não é a falta de recursos o que impede a correção de tais distorções. A verdade é que os governos nunca desistem de fazer caixa às custas dos que têm menos recursos para sobreviver. É uma espécie de disfarçada escravidão moderna, responsável pela criação e manutenção de um ambiente favorável para que políticos, em momentos oportunos, apareçam como amigos do povo anunciando aumentos dos programas de transferência de renda, ou distribuindo vale-gás e outros benefícios no melhor estilo “vale-voto”.
Por outro lado, está sempre aberta a caixa de bondade para as elites e para os políticos, os donatários do Século XXI. Reajustes generosos de suas remunerações – muitas vezes superiores a 30% ou até 40% – são votados e aprovados com muita pressa e sem nenhum pudor, beneficiando parlamentares, governadores, prefeitos, ministros, e diretores e conselheiros de empresas estatais. Parlamentares e membros do Judiciário ainda recebem auxílio-moradia, diárias generosas e gozam de planos de saúde ilimitados e de aposentadorias com valores muito acima do máximo concedido pelo INSS.
Para concorrerem às eleições e se manter no poder, os políticos ainda dispõem dos recursos dos fundos partidários e eleitoral, que totalizam bilhões, num sistema que se retroalimenta.
Legisladores não se envergonham de legislar em causa própria. Agora, passados apenas seis meses das últimas eleições, o país tem um novo exemplo disso com a tramitação de uma PEC no Congresso propondo a maior anistia da história a partidos políticos que tenham praticados irregularidades eleitorais. A proposta torna letra morta legislação anterior aprovada pelo próprio Congresso. Anula condenações e enterra os processos em tramitação na Justiça Eleitoral, inclusive aqueles relativos à utilização irregular dos fundos públicos. E, apesar de legislação mais ou menos recente proibir o financiamento privado de campanhas eleitorais, a PEC possibilita que dívidas de campanha sejam pagas com recursos de empresas privadas. Parece não haver limites.
Logo no início do novo governo, foi alterada a Lei das Estatais reduzindo brutalmente – de 3 anos para 30 dias – a quarentena dos que ocuparam cargos de direção partidária. Mais um jeitinho brasileiro para possibilitar a nomeação de membros e amigos das legendas aliadas como diretores e conselheiros das estatais, agências reguladoras e bancos públicos. Curiosamente, são estes cargos os de maiores remunerações no serviço público, com valores que podem ultrapassar a R$ 100 mil por mês. Mérito, competência, conhecimento e experiência deixaram de ser requisitos para a nomeação de cargos nos primeiros escalões da República.
E não se trata de caso isolado. Mais recentemente, foi modificado o estatuto da Apex (Associação Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos), dispensando a obrigatoriedade do domínio da língua inglesa para os postos mais elevados – e mais bem remunerados – da agência que lida com o comércio exterior.
O fundamento eleitoral parece ter sido adotado pelos governos das últimas décadas. Difícil acreditar que os políticos de fato desejam acabar com a pobreza se os votos dos mais pobres continuam decidindo as eleições.
Vivemos uma espécie de versão moderna das Capitanias Hereditárias que marcaram o período colonial com a distribuição de terras no Brasil pelo rei de Portugal. Aos donatários tudo é permitido, mesmo que seja necessário alterar as leis. Aos vassalos nada é permitido e as negativas são invariavelmente respaldadas pelo velho argumento da falta de recursos.
O povo brasileiro de há muito deixou de ser prioridade para os governantes. O bem estar da população como lei suprema preconizada por Cícero mantém-se preso ao escrito nos livros de filosofia. A preocupação maior continua sendo a arrecadação tributária, por certo necessária, mas que deveria vir acompanhada da devida contrapartida em serviços públicos de qualidade. Não é o que acontece. E ninguém se lembra do que ensinou Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990: “Não existe essa coisa de dinheiro público, existe apenas o dinheiro dos pagadores de impostos”.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças; empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: www.samuelhanan.com.br