O número de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil chegou a 78.537. Os dados foram levantados e analisados pela Fundação Abrinq, divulgados este ano, e apontam que o país tem por dia 215 notificações. O documento da entidade, que analisa dados até 2023, aponta que a região sudeste é responsável por mais de 25 mil casos, seguido da região sul, com mais de 10 mil denúncias.
Dos mais de 78 mil casos, quase 75% acontecem até os 19 anos e entre os gêneros, o feminino registra mais de 50 mil casos. De todos esses dados, o mais alarmante ainda é que mais de 60% dos casos acontecem dentro de casa e na família. Desde 2009, segundo levantamento da entidade, há uma crescente nos casos:
Os dados mostram uma realidade que vai ao encontro do caso Larissa Duque, que hoje se chama Heloísa, e está repercutindo nas redes sociais. A jovem relatou durante uma conversa no podcast do jornalista Beto Ribeiro que desde os nove anos a mãe a explorava sexualmente, além de outros tipos de violência sofridos por ela. O caso só veio à tona quando a jovem decidiu ir para a internet denunciar o que acontecia. Ela conseguiu que o Ministério Público abrisse uma denúncia contra a sua mãe, em 2016, muito tempo depois de outras tentativas de acionar as esferas públicas.
O ponto crucial desse tipo de violência é que ele ocorre dentro de caso e mostra que o mito da família ideal precisa ser revisto, já que nem sempre o primeiro e principal ambiente de um ser humano é acolhedor e afetuoso. Segundo a psicóloga Bruna Côrtes, especialista em Psicotrauma e Terapia Sistêmica na Norte Saúde Mental, o trauma causado por abusos praticados por figuras parentais ou cuidadoras é um dos mais complexos de se elaborar, sendo difícil romper laços familiares quando eles são também a origem da violência. “Quando a violência parte justamente da pessoa que deveria proteger, amar e cuidar, a criança experimenta uma profunda ruptura na sua percepção de segurança e confiança no mundo”, explica a psicóloga. Esse tipo de abuso, segundo ela, muitas vezes deixa marcas invisíveis que se manifestam ao longo da vida, nas relações afetivas, na autoestima e na saúde mental.
Bruna alerta que, em situações como a vivida por Heloísa, é fundamental compreender que o rompimento do vínculo com o familiar abusivo é não apenas legítimo, mas necessário para a preservação da vida e da saúde psíquica da vítima. “Existe uma crença cultural de que laços de sangue são indissolúveis, mas quando esses laços se tornam fonte de dor, medo e destruição, a separação é uma medida protetiva fundamental” e complementa que a parentalidade não é garantida apenas pela biologia. “Ser pai ou mãe não significa, automaticamente, exercer a função parental de forma saudável. Parentalidade implica oferecer cuidado, afeto e proteção. Quando esses pilares são rompidos, a relação se torna adoecida e, em casos extremos como esse, devastadora”, diz Bruna.
Outro ponto levantado pela especialista é que o medo, a vergonha e a dependência emocional ou financeira muitas vezes impedem que a vítima consiga romper com o ciclo de abuso mais cedo. “É importante que a sociedade entenda a complexidade dessas relações e ofereça redes de apoio qualificadas para que vítimas possam denunciar e se afastar de seus agressores com segurança”, pontua. No caso de Heloísa, a busca por justiça e a exposição pública de sua história mostram a força de quem consegue, apesar de tudo, romper o ciclo de violência. “Romper com uma mãe abusiva é um dos maiores desafios que alguém pode enfrentar, pois envolve não apenas uma decisão prática, mas também a reconstrução de toda uma identidade emocional que foi violada”, acrescenta a psicóloga.
Por fim, Bruna reforça a necessidade de políticas públicas e campanhas de conscientização sobre violência intrafamiliar, para que casos como o de Heloísa sejam prevenidos e, quando ocorrerem, recebam a devida atenção das autoridades e da sociedade. “Precisamos ampliar o olhar sobre a parentalidade, entendendo que o bem-estar da criança deve sempre prevalecer, mesmo que isso implique o afastamento de quem, biologicamente, lhe deu a vida, e uma das formas de fazer isso é desidealizar essas relações”, conclui.
Dados da ABRINQ para consulta: https://fadc.org.br/sites/default/files/2025-03/FUNDACAO_ABRINQ_2025.pdf