Como cientista, Zélia Ludwig confessa que já sentiu, diversas vezes, que seu trabalho ou o de colegas mulheres não era publicado como deveria. Ela é professora de física e investigadora no Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais, e já notou que, muitas vezes, seu nome e o de colegas mulheres sequer eram considerados para a autoria principal de artigos, apesar de elas mesmas serem as cientistas responsáveis por tais descobertas.
Em muitos casos – Zélia conta que um colega homem acabou listado como primeiro autor de estudos nos quais estava envolvida.
A repetição desse fato levou a cientista mineira a envolver-se mais profundamente com o assunto. Hoje, ela desenvolve estudos interdisciplinares sobre Gênero, Raça, Maternidade, Ciência e Sociedade com a proposta de discutir a equidade e os direitos das mulheres e da comunidade negra na academia e na sociedade por meio da desconstrução de conceitos pré-estabelecidos. “É uma questão de sobrevivência”, diz a professora em entrevista à National Geographic.
Mas o que a cientista brasileira vivencia agora, em pleno século 21, não é nenhuma novidade. Voltando anos atrás, basta olhar a trajetória da argentina Cecilia Grierson. Ela se tornou a primeira mulher a se graduar como médica em seu país, aos 30 anos de idade, em de julho de 1889.
Já naquela época, conta o Museu Roca (instituto de investigação histórica do Ministério da Cultura da Argentina), Grierson fundou também uma Escola de Enfermagem, a Associação Médica Argentina, a Sociedade Argentina de Primeiros Socorros e a Associação Nacional de Obstetrícia de Parteiras.
Embora tenha sido pioneira em muitas áreas da medicina na Argentina, durante bastante tempo o nome e a contribuição dela foram ignorados, como conta Maria Elina Estébanez, socióloga especializada em política científica, tecnológica e gestão, além de professora investigadora do Conselho Nacional de Investigação Científica e Técnica (Conicet) e presidente da Associação Civil Grupo Redes.
Ambos os casos, de Grierson nos anos 1880 e de Ludwig na atualidade, são exemplos de um fenômeno chamado de Efeito Matilda, no qual o trabalho das mulheres cientistas é tratado com menos importância. Como resultado, as mulheres nesta área acabam invisibilizadas e passam anos sem receber o reconhecimento que deveriam.
O QUE É O EFEITO MATILDA
A socióloga Maria Elina Estébanez define o Efeito Matilda como “um fenômeno social em que a contribuição das mulheresno campo da ciência e da tecnologia é ignorada ou minimizada no espaço público, na história e nas instituições”.
O termo, explica a investigadora do Conicet, tem as suas raízes na sociologia da ciência e, mais precisamente, num dos seus precursores, o norte-americano Robert Merton.
Este sociólogo publicou um compêndio em meados do século 20 no qual argumentava que a estrutura social da ciência se baseia em hierarquias de poder. Ele desenvolveu o que chamou de “Efeito Mateus”, um fenômeno no qual os cientistas mais famosos e com posições mais visíveis eram mais reconhecidos e recebiam mais recursos. Desta forma, muitos talentos poderiam ser ocultados.
Posteriormente, continua Maria Elina Estébanez, a acadêmica norte-americana e feminista Margaret Rossiter analisou a escrita de Merton e notou que o seu artigo se baseava em pesquisas que tinham sido levadas a cabo por uma colega mulher, mas que ela só apareceu nas notas de rodapé. Foi assim que Rossiter detectou um efeito tal como àquele descrito por Robert Merton, mas com viés de gênero.
Ela, então, decidiu nomear o caso como Efeito Matilda em honra de Matilda Joslyn Gage, uma sufragista nova-iorquina que lutou pelos direitos das mulheres e cujas contribuições foram durante muito tempo ignoradas.
De acordo com o texto O Efeito Matilda na ciência mexicana, escrito por María Elena Luna Morales, e publicado no livro Legitimidade ou Reconhecimento? As pesquisadoras do SNI. Desafios e propostas, de 2015, Matilda Gage fez conquistas significativas através da publicação dos seus vários livros e panfletos documentando experiências e eventos em torno da discriminação contra as mulheres no final do século 19.
Em um artigo de 1883 intitulado Woman as inventor (Mulheres como inventoras, em tradução livre) publicado na revista The North American Review, Gage menciona os nomes de várias mulheres que deram grandes contribuições à humanidade desde os tempos antigos.
O documento traz linhas que ainda hoje são válidas e ajudam a entender os impactos do Efeito Matilda para as cientistas. “Embora a educação científica das mulheres tenha sido grosseiramente negligenciada, algumas das invenções mais importantes do mundo são devidas a elas”.
“Privada como mulher do poder político, deve enfrentar o desprezo pelo seu sexo, o desprezo aberto e dissimulado da feminilidade, alusões de desprezo pelos seus poderes intelectuais, tudo isto tendendo a dificultar a expressão do seu gênio inventivo”, escreveu Gage no texto de 1883.
COMO O EFEITO MATILDA SE MANIFESTA NO SÉCULO 21
De acordo com a socióloga Maria Elina Estébanez, houve um avanço histórico em que as mulheres ganharam espaço na ciência. Por exemplo, nos últimos 150 anos, elas conseguiram entrar nas universidades para estudar carreiras científicas, além de se tornarem professoras para ensinar e fazer suas próprias investigações.
“Isto é um reconhecimento e um passo em frente, mas as formas como as contribuições reais das mulheres para a ciência são invisibilizadas, desconhecidas ou ignoradas ainda estão presentes”, admite a investigadora argentina, concordando com a física brasileira, que assegura: “Tal como o racismo, esta violência reinventa-se a si própria”.
O impacto pode ser visto na escassa presença de mulheres (e ainda mais mulheres negras) em posições de decisão, seja nos governos ou em lugares de maior poder no sistema científico, diz Estébanez, que conclui: embora haja progressos reais e que seguem ocorrendo, a movimentação rumo à equidade ainda é muito lenta.
A especialista ressalta que “ainda persistem na sociedade preconceitos e estereótipos os quais apontam para que certos cargos de decisão e de poder sejam melhor exercidos por homens porque as mulheres têm mais tempo para se dedicar aos cuidados e assuntos familiares, ou mesmo segue a ideia de que elas são menos competentes para exercer o poder”.
“Todos estes estereótipos culturais que persistem em muitas áreas da ciência e nos locais de pesquisa significam que o Efeito Matilda se expressa, atualmente, através da perda de visibilidade em espaços institucionais, no governo ou no exercício da autoridade”, sintetiza a socióloga.
A professora de física Zélia Ludwig conta que vive algumas dessas situações na carreira. Por exemplo, quando os projetos sobre os quais investiga e escreve são majoritariamente avaliados por homens. E quando seus colegas cientistas homens rejeitam suas ideias, tempos depois estas mesmas pessoas submetem projetos semelhantes para validação da comunidade científica.
“Isto é comum quando as mulheres têm ideias mais criativas, novas e – especialmente – quando existe a possibilidade de financiamento”, diz Zélia.
Embora a América Latina e o Caribe tenham atingido a paridade na proporção de cientistas dos gêneros masculino e feminino, as mulheres ainda estão sub-representadas em níveis mais elevados da carreira, e continuam a ser uma minoria em muitos campos da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática em quase todos os países da região.
Os dados estão no Women in Science, Technology, Engineering and Mathematics in Latin America and the Caribbean(Mulheres em Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática na América Latina e no Caribe, em tradução livre), documento publicado em 2020 pela ONU Mulheres.