As canções brasileiras não serão mais as mesmas. Um dos maiores compositores da Bossa-Nova e um dos fundadores do movimento, Carlos Lyra, morreu neste sábado (16). Lyra estava internado no Hospital Unimed, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro desde quinta-feira (14), onde deu entrada na unidade de saúde com um quadro febril.
Não há informações sobre a causa mortes, apenas rumores que o compositor teria contraído uma bactéria. Ainda não sabe-se o local do velório e nem onde será o enterro. Ele deixa uma filha, Kay Lira, do casamento com a atriz e modelo norte-americana Katherine Lee Riddel, de quem divorciou-se em 20014 e sua esposa Magda Pereira Botafogo.
O portal Sugestão de Pauta pede licença para publicar parte deste belo artigo de Ruy Castro, da FolhaPress.
Um dos últimos compositores da Bossa
De 1958 a 1965, Carlos Lyra, em parceria com Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e poucos mais, produziu maravilhas como “Primavera”, “Minha Namorada”, “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, “Coisa Mais Linda”, “Canção que Morre no Ar”, “Lobo Bobo”, “Saudade Fez um Samba”, “Se é Tarde me Perdoa”, “Feio Não é Bonito”, “Samba do Carioca”, “Samba da Legalidade”, “Aruanda”, “Quem Quiser Encontrar o Amor”, “Influência do Jazz”, “Sabe Você”, “Você e Eu”, “Maria Ninguém”, “Maria Moita” e muitas mais gravadas por João Gilberto, Nara Leão, Sylvia Telles, Astrud Gilberto, Elis Regina, Billy Eckstine, Brigitte Bardot e incontáveis grupos instrumentais. Dele, disse Tom Jobim: “Carlinhos é o maior melodista da bossa nova”.
Se Tom falou, estava falado embora, para o resto do mundo, o maior melodista da bossa nova fosse o próprio Tom, com Carlinhos pagando um honroso placê. Seja como for, esse corpo de canções, produzido em tão pouco tempo, foi suficiente para sustentar Carlos Lyra pelos 50 anos seguintes período em que, por vários motivos, sua produção não se comparou à dos tempos heróicos da bossa nova. O que fez com que seu mais antigo parceiro (e cordial desafeto) Ronaldo Bôscoli o definisse: “Carlinhos Lyra é o contrário do vinho. Quanto mais moço, melhor”.
Bôscoli sabia o que dizia. Os dois juntos, e mais uma plêiade de garotos por volta dos 20 anos, compunham uma turma que, naquela época, passava as noites no apartamento da quase adolescente Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana, para tocar violão, trocar acordes, cantar suas composições, rir muito e filar o uísque do dono da casa, pai de Nara. No futuro, dir-se-ia que a bossa nova nascera no apartamento de Nara. Mas Carlinhos, que vinha da pré-história do novo ritmo, sempre negou que tivesse sido assim. E acrescentava: “Nem a Nara nasceu no apartamento da Nara”.
Embora tenha sido um dos criadores do movimento, Lyra foi quem mais procurou discuti-lo o que, às vezes, resvalou em posições contraditórias. Exemplos? Cerca de 1961, por motivos ideológicos pertencia ao Partido Comunista e atuava no CPC (Centro Popular de Cultura), afastou-se de Jobim, Bôscoli e outros que considerava de “direita” e chegou a propor um novo nome, “sambalanço”, para sua música. O nome não pegou e ele voltou à denominação original. Em 1962, insurgiu-se também contra o que considerava um excesso de influência do jazz na bossa nova, principalmente a praticada no Beco das Garrafas donde o seu samba-manifesto, “Influência do Jazz”. Mas, já em 1963, gravou um disco, “The sound of Ipanema”, com o saxofonista americano Paul Winter e, em 1964, viajou pelos EUA com o principal jazzista da bossa nova, o também saxofonista Stan Getz. E foi também talvez o único a praticar explicitamente uma variedade rítmica dentro da bossa nova sua obra é composta de boleros (“Maria Ninguém”), marchas-rancho (“Marcha de Quarta-Feira de Cinzas”) e sambas-canções (“Minha namorada”). Naturalmente que, vindo de quem vinha, era tudo “bossa nova”.
Lyra pertenceu a uma extraordinária geração de compositores dos anos 60 que incluiu, entre outros, os americanos Henry Mancini, Burt Bacharach, Neil Hefti, Cy Coleman e Stephen Sondheim, o italiano Nino Rota, o francês Michel Legrand, o mexicano Armando Manzanero e, claro, Antonio Carlos Jobim. Todos fizeram música para cinema, televisão e teatro, sem prejuízo de canções avulsas, para seus cantores favoritos. Durante toda aquela década, eles foram, em escala internacional, a grande alternativa ao rock que já começava a impor sua ditadura ao mercado. Uns mais, outros menos, eles chegaram ainda fortes aos anos 70, mas, dez anos depois, todos tinham sido varridos das paradas de sucesso por um tipo de música que já não exigia melodia e harmonia sofisticadas. Nesse interregno, Carlos interessou-se por astrologia (aliás, pela “astrologia sideral”, que propunha uma nova ordem para os signos do zodíaco) e escreveu um livro a respeito. E começou também uma longa carreira de shows baseados em seu repertório clássico.
As pessoas se perguntavam: “Por que ele nunca mais compôs coisas como ‘Primavera’ ou ‘Minha namorada’?” Se a pergunta fosse dirigida a mim, eu respondia: “Não é que ele não queira ou tenha perdido a inspiração. O mercado é que não quer saber mais dele ou de quem faça música bonita”.
A prova de que a inspiração não abandonara Carlos Lyra está nas quase 20 grandes canções (com fabulosas letras de Aldir Blanc) que ele compôs para “Era no Tempo do Rei”, um musical brasileiro que, por três meses de 2010, lotou o Teatro João Caetano, no Rio, e saiu de cartaz sem que nenhum cantor se interessasse por elas. Foi pena muitas mereciam ter ganhado vida própria, fora do palco. Mas você nunca o ouviria queixar-se de que, muito antes disso, ele já fora varrido pelo mercado.
É possível que, ao falar da morte de Carlos, outros veículos o deem como nascido em 1936, 1938 e até 1939 confusão criada por ele próprio, numa tentativa de deter a passagem dos anos, e ratificada em seu livro “Eu & a Bossa”, cheio de imprecisões, lançado em 2008. Mas a data certa é 11 de maio de 1933.
Data que, no passado, Carlos admitia com tranquilidade quando não apenas a bossa ainda era nova, mas ele também, e, em 1963, a admirada Jacqueline (mulher do presidente John) Kennedy passava o dia cantarolando “Maria Nobody” pelos corredores da Casa Branca.
Minha namorada (Vinicius de Moraes e Carlos Lyra)