Depois de uma crise de hérnia de disco, a enfermeira Katia Silene Silva, de Volta Redonda (RJ), foi afastada do trabalho em 2019 – mas ela achava que isso seria uma licença breve de sua atividade, e não um assunto que pararia na Justiça.
“Travei trabalhando, quando estava reanimando um paciente”, lembra ela, hoje com 54 anos. “O médico, na época, falou: ‘Dona Katia, eu preciso te operar com urgência porque a senhora corre o risco de ir para a cadeira de rodas, porque é na lombar”.
Ela fez a cirurgia e, afastada do trabalho, passou a receber o auxílio por incapacidade temporária (antes conhecido como auxílio-doença) – o benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aos contribuintes que ficam incapacitados para o trabalho por mais de 15 dias devido a doença ou acidente.
O valor do benefício, conta Katia, superava R$ 3 mil. Embora ficasse abaixo do salário total que recebia como enfermeira, ela diz que era um valor com o qual “conseguia custear a vida” naquele momento.
O que ela não previa é que não seria considerada apta a retomar seu trabalho – e passaria a receber um valor de cerca de 60% desse benefício.
O afastamento do trabalho se prolongou, sem melhoras consideradas suficientes para retomar as atividades de enfermeira, até que, após uma perícia, o INSS comunicou a decisão de aposentar Katia por incapacidade permanente (antes conhecida como aposentadoria por invalidez).
A aposentadoria por incapacidade permanente é o benefício pago a quem, após perícia médica no INSS, é considerado “permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade laborativa e que também não possa ser reabilitado em outra profissão”, segundo o governo.
“O INSS me mandou uma carta dizendo que eu estava aposentada por invalidez, com um salário de R$ 1.800 e alguma coisa. Tentei dizer que eu não queria (aposentar), não consegui”, diz. “Vi pelo valor que não ia ter condições de arcar com as minhas despesas, mas não consegui reverter a situação”.
Katia diz que a primeira reação ao receber a carta foi chorar. “É uma sensação de impotência, porque você sabe como é difícil eu, uma pessoa pobre, ter feito uma faculdade, uma especialização, curso de mestrado. E, no final da minha vida, eu estar doente, não poder fazer um monte de coisa, e ganhar R$ 1.800”.
Hoje tratando também de depressão, diabetes e hipertensão, Katia diz que conta com ajuda de familiares e pessoas próximas.
“É uma impotência grande você estudar tanto para, no final, depender das pessoas. Não consigo me custear sozinha”, diz. “Sinto pena de mim”.
Disputa na Justiça
A redução na renda que afetou Katia é efeito de uma mudança trazida pela reforma da Previdência – em um ponto que, quatro anos depois, é questionado na Justiça.
Em novembro de 2019, quando entrou em vigor a reforma da Previdência, passou a valer uma nova forma de calcular a aposentadoria por incapacidade permanente.
O resultado é que, da forma como prevê a lei hoje, a aposentadoria por incapacidade permanente fica em um valor abaixo não somente do que era até 2019, mas também pode ficar inferior ao benefício por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença). (Veja detalhes sobre a mudança de regras abaixo).
Isso gerou ações judiciais individuais e coletivas que questionam a nova forma de calcular esse benefício.
O assunto também foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6279, apresentada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em 2019, questiona a validade de pontos da reforma – incluindo o que estabelece regras de pagamento da aposentadoria por incapacidade permanente –, com argumentos relacionados ao rito de votação de emenda à Constituição no Congresso.
A matéria está liberada para julgamento, mas ainda sem data prevista, segundo o STF.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do INSS – que mencionou a existência de ações individuais e coletivas sobre o tema e também citou a ação no Supremo – afirmou que não comenta ações judiciais em curso.
A Advocacia-Geral da União (AGU) disse à BBC News Brasil que “defende a constitucionalidade da disciplina referente à forma de cálculo das aposentadorias por incapacidade permanente para o trabalho”.
Disse que esse ponto está em harmonia com os “direitos constitucionais básicos dos trabalhadores” e não desafia cláusulas pétreas. A AGU destacou, ainda, que “as aposentadorias geradas por infortúnio laboral passaram a receber tratamento diferenciado daquelas em que a cessação da vida produtiva decorre de demais doenças”.
A nota diz que, segundo o princípio da separação de poderes, o Judiciário deve somente “afastar regras que manifestamente afrontem o texto constitucional”, “sob pena de invasão do espaço de conformação do poder constituinte reformador”.
Apontou que o STF analisa o assunto no julgamento de diversas ações direta de inconstitucionalidade conjuntamente e destacou que a Turma Nacional de Uniformização (TNU) também fará uma definição sobre o tema (entenda no fim desta reportagem).
Ao defender a reforma, a AGU afirmou que “toda a reforma da Previdência foi formulada com um claro intuito: trazer equilíbrio atuarial de forma a possibilitar a manutenção do sistema, revelando o esforço político para a preservação do direito fundamental à Previdência Social”.
A reforma da Previdência, bandeira econômica dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, era considerada por seus defensores como um fator que reduziria privilégios e impulsionaria o ânimo e a confiança dos investidores em relação à economia brasileira. Para os críticos, mudanças promovidas pela reforma deixariam os brasileiros menos protegidos.
‘Distorção no sistema’
A decisão do Supremo Tribunal Federal será determinante para casos como o de Katia Silene.
Ela é uma das pessoas que acionaram a Justiça, por meio da Defensoria Pública da União (DPU), para pedir que o cálculo da sua aposentadoria por incapacidade permanente obedeça regras anteriores à reforma da Previdência, sob o argumento de o novo cálculo ser inconstitucional.
O caso de Katia Silene teve, em primeira instância, uma decisão favorável ao pedido para aplicar a regra de cálculo antiga – depois, o INSS conseguiu reverter e a DPU recorreu novamente. Agora, o caso está suspenso, com decisão do juiz de que será necessário aguardar a decisão do STF sobre esse tema.
O defensor público federal Raphael Santoro, que cuida do caso de Katia, critica a mudança no cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente.
“Pessoas que ganhavam R$ 3 mil ou 4 mil vão ganhar valor pouco superior ao salário mínimo – isso gera uma desproteção muito grande”, diz.
Santoro argumenta que há uma “distorção no sistema” e questiona haver uma “proteção maior” para quem tem uma incapacidade temporária do que para quem não tem previsão de poder voltar ao mercado de trabalho.
“Na prática, os benefícios pagos por incapacidade à pessoa que está na ativa, mas afastada temporariamente, é superior ao da pessoa que se aposenta – ou seja, é uma situação de proteção maior a uma pessoa que tá em um grau de incapacidade menor em comparação à pessoa que tem incapacidade permanente”, diz.
“Imagina um caso em que a pessoa tem uma infelicidade, fica de cama, e vai receber um valor menor do INSS do que recebia quando tinha uma um uma doença temporária? Isso é muito grave”.
Mesmo com o caso atualmente parado na Justiça, Katia Silene diz que mantém o otimismo. “Vamos seguir adiante que no final tenho certeza que vai dar tudo certo. Se não deu certo, é porque não chegou no final”.
Aposentadoria e auxílio-doença: o que mudou após a reforma da Previdência
Até novembro de 2019, as pessoas que se aposentavam por invalidez recebiam 100% da sua média salarial (entenda cálculo abaixo) como aposentadoria.
Após a reforma da Previdência, essa aposentadoria – por incapacidade permanente – passou a ser de 60% da média salarial somada a dois pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder 20 anos para homens e 15 anos para mulheres.
Hoje o valor é de 100% da média salarial só quando a aposentadoria por incapacidade permanente for decorrente de acidente de trabalho ou doença relacionada ao trabalho.
O antigo auxílio-doença – hoje auxílio por incapacidade temporária – paga 91% da média salarial. Embora esse percentual tenha sido mantido na reforma da Previdência, outra mudança afetou o benefício.
Houve uma mudança na forma de cálculo da média salarial que afetou tanto o benefício temporário quanto o permanente. Antes, a base de cálculo era de 80% da média dos salários de contribuição desde julho de 1994.
Após a reforma, passou a ser de 100%. Ou seja, após a reforma, os menores salários também passaram a ser considerados no cálculo da média, reduzindo o valor final.
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Mais uma definição na Justiça
Outra definição, que pode ocorrer antes do julgamento do Supremo, será determinante para quem questiona na Justiça o valor de aposentadoria por incapacidade permanente.
Trata-se de uma decisão da Turma Nacional de Uniformização (TNU), composta por 12 juízes federais e responsável por julgar pedidos de uniformização de interpretação de leis federais.
A TNU vai definir se as aposentadorias por incapacidade permanente devem ser concedidas conforme a regra de cálculo prevista na reforma da Previdência ou se devem ser revistas.
A previsão do relator, juiz federal Odilon Romano, é que o processo entre na pauta de julgamento da sessão de dezembro de 2023, segundo informou a assessoria de imprensa do Conselho da Justiça Federal (CJF) à BBC News Brasil.
Segundo o CJF, essa análise ocorrerá depois de um pedido de uniformização apresentado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra acórdão proferido pela Turma Regional de Uniformização da 4ª Região que reconheceu ao autor de uma ação o direito de ter seu benefício de aposentadoria por incapacidade permanente de acordo com regra anterior à reforma da Previdência.
O INSS alegou divergência entre essa decisão e outros entendimentos sobre o mesmo tema.
Por Laís Alegretti
BBC News Brasil em Londres