O remake da novela Vale Tudo reacende um debate que segue atual mais de 30 anos depois, a realidade das mulheres que criam seus filhos sozinhas. Na trama, a personagem Lucimar, interpretada por Ingrid Gaigher, vive as dificuldades de ser mãe solo em um Brasil que pouco mudou nesse aspecto. A história vai ao encontro do Censo Demográfico de 2022, o qual aponta que 86,4% das famílias compostas por apenas um adulto e seus filhos são chefiadas por mulheres, o que representa mais de 11 milhões de mães solo no país. Esse número é quase seis vezes maior do que o de pais na mesma condição. A desigualdade não é só numérica, mas estrutural.
A psicanalista Ana Lisboa, especialista em saúde mental feminina, observa que essas mulheres adoecem silenciosamente sob o peso de múltiplas jornadas. “Quando falamos de mães solo, falamos de abandono institucional. Elas são deixadas por homens, sim, mas também por empresas que não flexibilizam horários, por políticas públicas que não existem, e por uma sociedade que naturaliza a ausência paterna”, afirma.
Estudos publicados no Journal of Autoimmunity e em revistas como The Lancet Psychiatry já relacionam o estresse crônico à ativação de doenças autoimunes. E no Brasil, os dados do Ministério da Saúde apontam que as mulheres são 75% dos casos diagnosticados de doenças autoimunes, muitas delas associadas à sobrecarga, como lúpus, tireoidite de Hashimoto e artrite reumatoide.
Para Ana Lisboa, os impactos da maternidade solo ultrapassam o psicológico. “O burnout materno não é só mental. Ele é imunológico. Ele aparece no corpo. A mulher que segura tudo sozinha por anos acaba com o sistema imunológico comprometido, com crises inflamatórias recorrentes e com quadros de exaustão que muitas vezes são minimizados como ‘cansaço comum’”, explica.
Ainda segundo Ana, o discurso que exalta a “força da mãe solo” esconde um problema mais grave. “A romantização da mulher que dá conta de tudo é uma estratégia social para manter a sobrecarga onde ela sempre esteve, no colo da mulher. Só que agora, isso está custando a saúde física e mental delas.”
Mesmo com medidas como o Bolsa Família e o Auxílio Brasil, não há no país uma legislação que reconheça os desafios específicos enfrentados por mães solo. Não existe jornada reduzida garantida por lei, nem prioridade em creches públicas em todas as regiões, o que limita ainda mais a autonomia dessas mulheres.
O Brasil segue sendo um país onde a maternidade é responsabilidade quase exclusiva da mulher. Mas quando essa mulher está sozinha, sem rede de apoio, sem tempo para cuidar de si, sem descanso e sem reconhecimento institucional, o corpo começa a cobrar. E o que era para ser cuidado, vira adoecimento.
“A mulher que segura tudo não precisa de aplauso. Ela precisa de suporte. Precisa de política pública, de divisão real das responsabilidades, de visibilidade e de respeito. Porque não há saúde possível na solidão forçada”, conclui Ana.