Para Simone Kliass, a voz é uma ferramenta flexível: ela muda conforme o contexto, a intenção, o interlocutor e a emoção. Ela pode transmitir mensagens alegres e também avisos importantes, pode humanizar uma marca, dar vida a um avatar e possibilitar experiências imersivas.
Voz do Aeroporto Internacional de São Paulo, Simone também está por trás dos avisos aos tripulantes da LATAM Airlines, da campanha de um projeto de sustentabilidade da Samsung Brasil e até de uma audiodescrição para uma série documental da Netflix — só para citar alguns exemplos de uma carreira de mais de 20 anos.
No fim do ano passado, Simone conquistou três prêmios — “Melhor Audiodescrição”, “Melhor Comercial de TV” e “Melhor Vídeo Corporativo” — na mais recente edição do Voice Arts Awards, ou “Oscar da Voz”. Promovido pela Society of Voice Arts and Sciences (SOVAS), o evento é um dos mais prestigiados por profissionais que trabalham no ramo e é realizado anualmente em Los Angeles, nos Estados Unidos.
Toda essa versatilidade se reflete também na forma como a profissional se aventurou em experiências diversas ao longo da carreira, para além da atuação como voice artist — termo que, para a paulistana Simone, traduz melhor a natureza do seu trabalho.
“Eu gosto de usar o termo em inglês ‘voice artist’, uso mais essa nomenclatura do que ‘locutora’ porque acho que passa um pouco dessa ideia de que nós somos artistas de voz. Eu atuo com a minha voz”
Atualmente, ela acumula as funções de palestrante, consultora de inovação, pesquisadora de conteúdo imersivo, cofundadora e conselheira da Associação Brasileira de Realidade Estendida (XRBR), presidente do comitê XR, Games e Metaverso do IAB Brasil, e embaixadora na Women in Voice, organização voltada a mulheres e pessoas de gênero diverso no mercado de tecnologia da voz.
Isso sem contar as outras atividades que já desempenhou (atriz e apresentadora em canais como TV Cultura e Multishow) e as formações variadas (Administração de Empresas pela FGV, Artes Cênicas pelo Célia Helena e em locução pelo SENAC).
“Eu acho que nós não cabemos em uma caixinha só e é bom que seja assim porque acabamos estimulando outros lados nossos. Demorou um pouco para eu entender e aceitar que estava tudo bem não caber em uma única caixinha; hoje, eu abraço as minhas diversidades”
Em entrevista ao Draft, Simone repassa sua carreira, analisa as transformações do mercado de locução, fala sobre os estereótipos de gênero que se manifestam nessa indústria – já reparou que as assistentes virtuais têm sempre voz de mulher? – e conta como se interessou pela inovação do mundo da Realidade Estendida.
Você começou sua carreira aos 9 anos como atriz e, de alguma forma, continuou atuando como artista. Como foi essa mudança do palco para os bastidores?
Eu comecei a fazer comercial de TV com 9 anos como atriz mirim. Minha mãe era modelo e atriz de comercial, e ela me levava nos testes, não tinha com quem deixar, né? Eu ia junto e adorava aquele mundo mágico, aqueles estúdios que, antigamente, eram grandes, aquelas comidas gostosas nas filmagens, um monte de gente, luz, cenário! Parecia um sonho!
E, aí, nunca mais consegui sair desse mundo porque é fascinante, mas não é só glamour. Eu cresci nesse meio, com tudo o que ele tem de bom e o que tem de ruim – por exemplo os julgamentos excessivos, a competição… Você é uma criança em um mundo de adultos
Cresci trabalhando, fiz teatro amador nesse meio tempo e, na hora de escolher a faculdade, resolvi fazer Administração porque aquela vida era muito complicada. E acho que foi incrível ter feito esse curso, sou muito grata pelo que aprendi porque hoje eu sou uma empreendedora também. Ajudou muito na minha carreira.
Quando estava estudando na FGV, estagiei em agência de publicidade e no mercado financeiro, mas não era para mim…
Então, comecei a trabalhar como apresentadora de televisão: trabalhei na TV Cultura, Multishow, RedeTV! e Canal Futura. Até que comecei a fazer TV corporativa no Unibanco, que depois virou Itaú Unibanco. Foram dez anos trabalhando com isso, fazendo entrevistas, programas ao vivo, ajudando a escrever roteiro e fazendo locução.
Foi lá que comecei de verdade na locução e percebi que esse trabalho poderia me trazer mais flexibilidade e tranquilidade. Porque, como apresentadora do Multishow, eu vivia parte no Rio de Janeiro e parte em São Paulo. Na TV Cultura, também precisava viajar bastante
Além disso, no trabalho de locução não tem aquela coisa de alguém ficar olhando, julgando a sua aparência, comparando seu corpo — coisas pelas quais eu passei quando criança trabalhando como atriz mirim. Na locução, não importa como eu estou fisicamente.
Você foi reconhecida mais de uma vez pelo seu trabalho de voz na premiação da SOVAS. Como foi esta última edição do evento, no qual você levou prêmios em três categorias?
No início da minha carreira, nunca imaginei que, um dia, ganharia um prêmio fazendo uma locução de banco sendo mulher.
Quando eu comecei, não tinha trabalho de voz para mim em instituições financeiras e setor automotivo – normalmente essas empresas preferiam associar sua marca à uma voz masculina. Por isso, foi muito especial ganhar o prêmio de melhor comercial de televisão para o Banco PAN.
Outro projeto especial que me rendeu o prêmio de narração de destaque em vídeo corporativo foi o da Samsung Brasil, um projeto focado em sustentabilidade — uma causa importante para mim.
E o terceiro prêmio foi na categoria de audiodescrição para televisão ou filme em língua portuguesa. A audiodescrição é um recurso de acessibilidade e eu acho muito legal que exista uma premiação com essa categoria, demonstra que o mercado reconhece a importância da inclusão.
Isso e o prêmio pelo comercial do banco com uma voz feminina representam uma evolução nessa indústria.
Levando em consideração a questão de gênero, como era essa indústria quando você começou a trabalhar?
Você já deve imaginar quais eram os setores que procuravam mulheres para fazer as locuções, né? Empresas de beleza, moda, produtos para casa, produtos de limpeza, cuidado com a família… Eu comecei no mercado fazendo Marisa. Setor automotivo e financeiro eram para vozes masculinas.
A primeira vez que trabalhei com uma marca de carro foi em 2008, uma locução para um comercial do Tiida. Eu fiquei muito entusiasmada! Pensava: “estou fazendo um carro, caramba, que disruptivo!”.
É possível afirmar que, apesar dessa mudança, alguns estereótipos dentro do mercado de locução ainda permanecem? Por exemplo, o uso de vozes femininas em assistentes virtuais.
Total! Eu sou embaixadora de uma associação internacional chamada Women in Voice e, lá, nós discutimos muito essa questão.
Tem um livro chamado Wired for Speech que aborda, dentre outros temas, a parte psicológica do uso da voz, como as pessoas reagem à voz masculina e feminina.
No caso, o autor cita pesquisas segundo as quais as mulheres seriam percebidas como melhores “professoras” de assuntos relacionados ao amor, cuidado e carinho, enquanto os homens seriam melhores para explicar coisas mais técnicas…
E, aí, o que aconteceu foi que as empresas que desenvolveram as assistentes virtuais usaram muito dessas pesquisas para definir a voz do produto. Por isso, lá atrás, só tinha assistente com voz feminina.
É aquela coisa que vem da época das telefonistas. Quem ocupava esse papel lá atrás? As mulheres, que são vistas como subservientes, sempre prontas para atender e a ajudar, carinhosas… Remete à voz de uma mãe, alguém que transmite conforto e cuidado
Com o surgimento de movimentos como o Women in Voice e publicações da Unesco, esse cenário foi mudando. Teve um estudo da Unesco muito importante chamado I’d Blush If I Could [“Eu ficaria corada se pudesse”, em tradução livre], que mostrava o quão problemáticas eram as respostas dadas pelas assistentes virtuais às frases violentas, machistas e desrespeitosas.
Por exemplo, se, no passado, você chamasse a Siri de “gostosa”, ela responderia algo na linha de “eu ficaria corada, se fosse possível”… Então, o pessoal da Unesco e outros começaram a insistir na necessidade de reprogramar esses sistemas.
Hoje, a Siri não responde mais que “ficaria corada”; ela foi reprogramada para dar outra resposta, mas por quê? Porque tivemos movimentos de conscientização, como um outro da própria Unesco chamado Hey, update my voice [“Ei, atualize a minha voz”, em tradução livre]
Precisamos estar o tempo todo vigiando, trabalhando pela causa, o que inclui ter equipes mais diversas. Porque quando você não tem uma equipe diversas, não vai conseguir entender que não é legal uma assistente virtual responder que “ficaria corada” ao ser chamada de “gostosa”. Dificilmente, uma mulher teria concordado com esse tipo de resposta.
Hoje em dia, outras diversidades também estão mais inseridas nesse mercado?
Outra evolução desse mercado foi o regionalismo. Antes, nós tínhamos vozes quase exclusivamente do eixo Rio-São Paulo e, mesmo quando eram de outros estados, essas pessoas tinham que aprender o tal “sotaque neutro” — que, na verdade, não existe.
Eu tenho vários amigos que são de outros estados e que, no começo de carreira, precisaram fazer isso para conseguir trabalhar. Por isso, acho que é uma evolução muito grande a inclusão de sotaques, estamos buscando a diversidade cada vez mais.
E existem outros movimentos para além dessa questão do sotaque que são muito importantes, como o de inclusão de pessoas negras nesse mercado. Inclusive, a Joan Baker e o Rudy Gaskins, os fundadores da SOVAS, são pessoas negras. Os dois sempre levantam essa bandeira e, no evento, tem muitos locutores negros participando.
Diante disso, tem quem argumente que “ah, mas a voz não tem cor”; por conta desse pensamento, já me deparei com questões éticas. Uma vez, fui aprovada para fazer a voz de uma avatar. Só que, quando recebi a persona, vi que a bonequinha era negra. Agradeci a oportunidade, mas expliquei que não poderia fazer porque essa voz deveria ser de uma locutora negra
Não fazia sentido a empresa construir uma persona negra para uma mulher branca, como eu, fazer a locução. Indiquei várias profissionais negras, expliquei qual era o problema na minha opinião, mas isso virou uma questão porque, para o cliente, “voz não tem cor”. Acabou que não trabalhei mais para essa produtora.
Ainda falando sobre a evolução do mercado, o que mudou em termos tecnológicos?
Aqui, onde estou dando a entrevista, é o meu estúdio, que fica dentro da minha casa. Atrás dessa parede, está o meu marido. Olha como a tecnologia evoluiu de uma forma que tornou acessível para alguém, com a minha profissão, trabalhar de casa.
Porque, antigamente, quando o cliente precisava mudar algo, eu tinha que sair de casa, atravessar a cidade e, às vezes, enfrentar um trânsito de duas horas para chegar no estúdio e falar uma palavra. Isso acontece porque as empresas são dinâmicas, os produtos mudam, são atualizados, e o conteúdo precisa ser ajustado. Só que, hoje, eu consigo fazer isso na minha casa.
Eu entrego uma locução bruta incrível, com toda a qualidade de um estúdio, mas a mixagem, trilha, efeito sonoro etc. são inseridos pela produtora. As atividades ainda são divididas por departamento, com a diferença de que conseguimos atuar à distância e com qualidade.
Com relação à tecnologia, de onde veio o seu interesse pela inovação da Realidade Estendida?
Eu já trabalhei para uma revista britânica que, certa vez, me pediu para gravar uma matéria sobre áudio imersivo em uma produtora e foi lá que me encantei pelo assunto.
O foco daquele conteúdo era sobre como a voz se relacionava com a realidade virtual e, a partir de então, comecei a estudar sobre o assunto — já são oito anos nisso
Meu marido, que também é locutor, se interessou pelo tema, nós fomos pela primeira vez para o SXSW estudar o assunto e entender como poderíamos trabalhar com isso.
Nesse festival, conheci outros brasileiros que estavam interessados na mesma inovação e, aí, começamos uma comunidade. Depois, viramos uma associação com o objetivo de compartilhar conhecimento, fomentar esse mercado e gerar oportunidades.
As oportunidades neste mercado para profissionais que trabalham com a voz começaram com os games?
Game é uma grande parte dentro da Realidade Estendida, que é um guarda-chuva que abarca Realidade Virtual, Aumentada e Mista. Mas o uso de voz na Realidade Estendida vai muito além, sendo muito aplicada em treinamentos na área da saúde e na indústria.
Apesar do mercado de games de fato ser um dos grandes impulsionadores do business, percebemos que ele não concentra todas as atenções quando participamos de conferências internacionais. Em vez disso, tem se falado dessas experiências imersivas em outros setores, para criar um ambiente de teste, por exemplo.
E o lado B dessa história? Existe uma preocupação sobre tais tecnologias ameaçarem os profissionais que trabalham com a voz?
Essa discussão existe e quem, como eu, estuda o assunto há muito tempo percebe um grande avanço, por exemplo, nas assistentes virtuais, que estão se comunicando cada vez melhor. Então, o que profissionais como locutores e dubladores têm pedido é uma regulação.
Ninguém é louco de falar “parem as máquinas”; não tem volta, a questão é que a tecnologia está evoluindo muito mais rapidamente do que a regulação e precisamos discutir questões como onde a voz de um profissional vai ser utilizada
A voz de assistentes virtuais foi desenvolvida a partir da contratação de uma profissional. Então, no caso da Siri, que surgiu antes, uma profissional ficou cerca de quatro meses gravando na Europa, ela fez todo o corpo de gravações que, depois, é usado pela Inteligência Artificial para gerar outras frases.
Já no caso da Alexa, o tempo de gravação foi bem mais curto e, com a tecnologia atual, seria necessário um volume de gravação ainda menor.
Se de um lado isso traz uma facilidade, de outro levanta questões sobre a forma que a voz de um profissional pode vir a ser usada, afinal, nem tudo o que a assistente vai falar foi dito originalmente por esse profissional, ele não sabe quais mensagens irá passar
Só que precisamos entender que esse tipo de debate não é exclusivo do mercado de locução. Diz respeito a todas as áreas de atuação, a regulação é um tema de importância global.
Não se trata de ser contra a tecnologia, eu mesma sou uma entusiasta do tema, porém é importante compreender que a Inteligência Artificial Generativa e outras tecnologias são ferramentas e, como toda ferramenta, existe o melhor jeito de usar — e outros que podem trazer grandes prejuízos. Precisamos falar sobre essas diferentes possibilidades de uso.
Por Ana Oliveira/Projeto Draft
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