Os pais de Mônica Martins envelheceram cuidando do negócio da família, um posto de combustível em Uruaçu, no interior de Goiás. Ela foi para a capital do estado exercer Direito e atuou por 23 anos como advogada trabalhista. Hoje, aos 49, vive na cidade natal, com o marido e a filha caçula, de 6 anos, onde tenta administrar o autoposto. Mas a volta ao lar não deixou a vida profissional mais fácil. As brigas, antes travadas nos tribunais, agora, ocorrem com os genitores.
“Eu faço uma coisa, eles vão lá e desfazem”, conta Mônica. A sensação dela é a de receber uma procuração para gerenciar o negócio e ter o documento revogado ao mesmo tempo. Enquanto isso, o posto sobrevive às dificuldades e se arrasta sem prosperar. “Tenho muitos planos, minha cabeça não para, tentando desenvolver as coisas, mas parece que estou contra a correnteza”. O maior desafio da advogada na administração do negócio é justamente administrar os conflitos familiares.
A dificuldade de Mônica não é um evento isolado e, sim, bastante característico das organizações familiares atuante tanto em pequenos quanto em grandes companhias, independentemente do segmento.
Para Paulo Gabriel Carvalho, procurador do Estado do Paraná e especialista em soluções para empresas familiares, situações como a dos Martins estão por trás de inúmeros casos de fechamento e falências desse modelo de gestão. “O problema do negócio é que o negócio é muito família”, analisa Carvalho. Ou seja, as relações entre os integrantes se misturam com as funções exercidas na empresa e, em geral, os resultados não são positivos.
Segundo o procurador, misturar despesas pessoais com as da empresa, empregar pessoas por parentesco em funções não condizentes com as habilidades do cargo, não planejar a sucessão e até mesmo usar a o sucesso da empresa para manter os filhos próximos, impedindo-os de realizar os próprios sonhos, são alguns dos exemplos das condutas que resultam em finais quase sempre desastrosos tanto para a família quanto os negócios. “O negócio serve à família ou a família serve ao negócio?”, questiona Carvalho. Na visão dele, as famílias empresárias saudáveis estão a serviço da empresa.
Maldição das três gerações
Sem dúvidas, não existem estatísticas para ditos populares, mas os números de uma pesquisa feita em parceria entre o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Sebrae parecem validar um provérbio antigo: “Avô rico, pai nobre, neto pobre”, também apelidado de “a maldição das três gerações”.
Segundo o estudo, publicado em fevereiro de 2023, 90% das empresas brasileiras são familiares. Elas respondem por 65% da riqueza gerada no País – um valor estimado em US$ 1,385 trilhão com base no PIB de 2023 – e por 75% de toda mão de obra empregada.
Na contramão dos bons resultados, a profecia. Dados do Banco Mundial apontam que apenas 30% das empresas familiares chegam à terceira geração e, entre elas, só a metade sobrevive.
Sucessão
A consultoria Maio decidiu aprofundar essa questão e elaborou um estudo intitulado “Sucessão de CEO em empresas familiares”, em que aponta os desafios do processo de transição do comando da organização, avalia o impacto em outros âmbitos do ecossistema e enumera aspectos facilitadores e dificultadores da boa mudança.
Ainda que o documento destaque a sucessão de companhias que já possuem parentes de segunda ou terceira geração em cadeiras do conselho administrativo ou consultivo, muitas das dores relatadas perpassam outros negócios.
O início do documento verbaliza o ponto nevrálgico do processo sucessório: “por que é tão difícil?”. Na visão da Maio, “os empreendedores que construíram empresas relevantes têm muitas características em comum: são tomadores de risco, altamente intuitivos, resilientes e orientados para a construção de relacionamentos de longo prazo, cercam-se de profissionais que os apoiam na execução e com os quais constroem grande relação de confiança”. Contudo, “as circunstâncias e suas características pessoais não necessariamente os preparam para formar sucessores”.
Além disso, as organizações familiares têm características muito peculiares e raízes profundas na cultura organizacional, missão e nos valores concebidos e pregados pelos fundadores. Pela experiência adquirida pela consultoria, a sucessão deveria estar no planejamento das companhias e, sempre que possível, formar o próximo presidente internamente, sendo ou não herdeiro, um ideal ainda pouco praticado.
Por essa razão, aliás, o maior risco de uma organização familiar é a ausência repentina do fundador. “Nós sempre recomendamos aos nossos clientes que discutam e tenham planos sucessórios revistos de forma recorrente. Afinal, a ausência repentina de um fundador sem alternativa sucessória representa um importante risco para seus herdeiros”, alerta Fernando Andrauss, sócio-fundador da Maio.
Segundo o consultor, em situações como a descrita anteriormente, as companhias tendem a acelerar a sucessão e os processos podem se tornar difíceis para todos.
Ficção – ou nem tanto assim -, a série “Succession”, disponível na HBO e ganhadora de 13 Emmys, retrata, em quatro temporadas, as disputas da família Roy pelo comando do maior conglomerado midiático e de entretenimento do mundo. Por trás do desejo da liderança, mágoas e exigências dos filhos pelos traumas da infância disfuncional e culpas atribuídas aos pais. Por trás da postura ambígua do pai e fundador, uma sanha não só de continuar relevante no jogo, mas também de desconfiança dos herdeiros naturais, enfraquecendo-os como sucessores.
“Frequentemente, em empresas de controle familiar, seus fundadores são conhecidos pela capacidade de identificar oportunidades de negócios e de realizá-las. A estratégia, portanto, está na ‘cabeça do dono’, mesmo quando não está formalizada”, descreve Andrauss, Em situações como essa, é comum que as próximas gerações, com cadeiras no conselho, foquem mais em controles e supervisão e se preocupem menos com o crescimento. “Entre outros indicadores, este é um dos principais achados da pesquisa para membros de famílias empresárias”, destaca.
Estratégias de solução
Paulo Gabriel Carvalho diz que as organizações familiares deveriam focar mais “no” sucessão que “na” sucessão. Não impor aos filhos a obrigação de assumir a empresa quando desejam seguir em outra direção ou nunca prepará-los de forma transparente e natural para o comando, são medidas importantes de serem adotadas. De acordo com Carvalho, muitas vezes, o filho vai buscar experiências em outras companhias, começando do mesmo lugar que outros com seu nível de experiência, para vivenciar desafios e se desenvolver longe do manto protetor da família.
Para a Maio, os processos internos, elaborados de forma respeitosa e transparente, compartilhados com todos os membros do conselho e embasados nos valores e culturas organizacionais, tendem a funcionar bem e a ter uma melhor performance quando a liderança é alguém da própria empresa.
Quando a cadeira é ocupada por um executivo “de fora”, sua integração é facilitada se tiver respeito pela história da companhia e pelo que foi feito antes – ao invés de dizer que tudo o que foi feito até aquele momento precisa ser mudado -, se adotar uma comunicação ética e verdadeira com as equipes – ao invés de comunicados digitais, em murais ou por meio de conselheiros – e não compartilhar opiniões sobre ou em nome da companhia em redes sociais e veículos de mídia sem consultar os demais executivos.
Por outro lado, o profissional conduzido ao alto posto terá dificuldades de se movimentar em uma empresa que o convidou para a função para solucionar conflitos internos de relacionamento, que não possui plano estratégico de longo prazo nem políticas de governança.
Por Isis Brum/M&C