Galina nasceu na Ucrânia. Ela fala ucraniano, seu marido está servindo no Exército ucraniano e ela mora em um vilarejo ao sul da cidade de Vinnytsia, no centro da Ucrânia.
Mas Galina é legalmente russa. Ainda criança mudou-se com a família para a Rússia, onde se tornou cidadã.
Mas, devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, ela — tal como milhares de outros russos na Ucrânia — está agora num limbo jurídico.
“Quando você mostra seus documentos, as pessoas te olham feio”, diz ela na cozinha de sua casa, onde passa o tempo costurando camisetas para soldados ucranianos feridos.
Segundo o serviço estatal de migração da Ucrânia, todos os estrangeiros na Ucrânia têm direitos iguais e nenhuma nacionalidade é discriminada.
Mas alguns alegam que não é bem assim. Advogados que trabalham para russos na Ucrânia, por exemplo, dizem à BBC que seus clientes têm suas contas congeladas.
Depois de a Rússia ter lançado a sua invasão em grande escala contra a Ucrânia, o Banco Nacional ucraniano restringiu os serviços financeiros a todos os cidadãos russos e bielorrussos (Belarus é um antigo aliado da Rússia), embora afirme que aqueles com autorização de residência não são afetados.
Galina discorda. Diz que, por causa de seu passaporte russo, não consegue emprego e teme que a sua conta bancária seja bloqueada.
Ela está grávida de sete meses, mas, como não é legalmente ucraniana, não tem acesso aos serviços de saúde públicos gratuitos.
Galina também teme não conseguir registrar o nascimento de seu filho: após se casar com o seu marido ucraniano Maksym numa igreja, ela diz que as autoridades se recusaram a reconhecer o matrimônio devido à sua situação legal.
“Disseram: ‘Volte quando tiver passaporte'”, explica Galina. “Eles não conseguem entender quem eu sou.”
Ela chegou a solicitar a cidadania ucraniana, mas não conseguiu concluir o processo devido à invasão da Rússia.
Agora que seu passaporte temporário ucraniano expirou, Galina conta que se sente como uma “refém da Rússia”.
“Mudar passaportes era difícil mesmo antes da guerra — agora é impossível”, diz ela.
Na avenida Povitroflotskyi, no centro de Kiev, fica um prédio branco de três andares com um jardim coberto de ervas daninhas. É cercado por uma cerca alta de arame farpado, e as venezianas estão firmemente fechadas.
Ali se localiza a embaixada da Rússia, que está fechada desde 23 de fevereiro do ano passado, quando funcionários foram evacuados por “razões de segurança”.
Um dia depois, Moscou começou sua invasão em grande escala, e o que restava das relações diplomáticas entre Kiev e Moscou se desintegrou.
Milhares de pessoas na Ucrânia, como Galina, passaram, então, a viver na incerteza.
Atualmente, existem mais de 150 mil russos com autorização de residência permanente na Ucrânia. Outros 17 mil têm autorização temporária.
Para que possam solicitar com sucesso um passaporte ou cidadania ucraniana, primeiro precisam renunciar fisicamente à cidadania russa.
Mas o governo russo complicou esse processo: é preciso entregar os documentos num consulado russo no exterior ou na própria Rússia.
Não há garantias, portanto, de que Galina não seria presa ao fazer isso.
Quando os filhos de Galina voltam da escola, é possível ver a angústia nos olhos dela. Uma ansiedade que ela tenta esconder dos filhos.
Mas Galina se recusa a responsabilizar a Ucrânia ou se dizer discriminada.
Ela atribui toda a culpa à Rússia por sua situação, bem como aos seus parentes russos que optaram por apoiar o país na chamada “operação militar especial”.
“Como posso apoiar um ladrão, um estuprador e um assassino que invade minha casa?”, diz.
Questionada sobre o que acha que aconteceria com sua família se seu marido Maksym fosse morto em combate, Galina fica, de repente, sem reação.
“É muito assustador”, diz. “Mesmo que ele se machuque, não poderia visitá-lo no hospital, porque tecnicamente não somos casados.”
“Para o restante do mundo, somos dois estranhos.”
“Escolhi a Ucrânia”
Quando a russa Anastasia Leonova se mudou de Moscou para Kiev em 2015, seus amigos avisaram que ela “não teria permissão para falar russo” e que “lá só havia nazistas”.
Foi uma narrativa de propaganda russa que a incomodou, pois ela tinha tios e primos que viviam na Ucrânia.
Anastasia deixou sua terra natal após criticar nas redes sociais a anexação da Península da Crimeia em 2014 e o apoio russo a militantes separatistas, o que a levou a perder o emprego na Rússia e a receber ameaças de morte.
Em 24 de fevereiro do ano passado, enquanto as tropas russas avançavam em direção a Kiev, Anastasia diz que só tinha um pensamento em mente: ficar e lutar.
“Meu sangue é parte ucraniano”, diz ela.
“Escolhi a Ucrânia como minha pátria; não poderia trair essa escolha”.
Ela se ofereceu para ser médica no Exército ucraniano, enquanto os militares defendiam a capital contra as tropas russas.
Questionada sobre se é tratada de forma diferente por ser russa, Anastasia abre um sorriso e diz: “Ninguém pedia meu passaporte quando trabalhava”.
“Com certeza, meus colegas sabem.”
“Desde que cheguei aqui, desde o primeiro dia, sonho em ter um passaporte ucraniano”, diz ela.
“É por isso que estou lutando. Não apenas pela liberdade, mas pelo meu passaporte.”
Apenas algumas centenas de russos obtiveram a cidadania ucraniana nos 18 meses desde a invasão em grande escala, contra 1,7 mil no ano anterior.
Diferentemente de Galina, Anastasia sente que está mais perto do seu sonho. Servir no Exército provavelmente a ajudou.
O serviço militar, o casamento com um ucraniano e o tempo de residência são considerados nos pedidos de cidadania.
Segundo destacam as autoridades ucranianas, ter o direito legal de permanecer na Ucrânia exige mais do que apenas uma mudança de identidade.
Fato é que esta guerra colocou milhares de russos como Galina e Anastasia numa posição difícil dentro da Ucrânia.
A chefe do Serviço Estatal de Migração da Ucrânia, Natalia Naumenko, alega à BBC que nenhuma nacionalidade é discriminada quando se trata de obter a cidadania.
Segundo o governo ucraniano, uma nova lei está sendo elaborada para simplificar os pedidos de cidadania e de residência para aqueles que lutam pela Ucrânia.
Mas Naumenko adianta que, graças à invasão em grande escala, o processo certamente não será facilitado para os russos.
“Já simplificamos tudo para aqueles que lutam pela Ucrânia”, diz ela.
“Por que a Ucrânia tem que fazer o mesmo para todos os russos em geral?”, questiona.
Por BBC News Brasil
Com reportagem adicional de Insaf Abbas, Hanna Chornous, Anastasia Levchenko e Hanna Tsyba