“Se países ricos cumprissem suas promessas, teriam mais moral para cobrar”. É assim que o principal negociador ambiental do governo brasileiro, o secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, André Corrêa do Lago, definiu em entrevista à BBC News Brasil parte da postura do Brasil na cúpula do clima da Organizações das Nações Unidas (ONU), a COP-28. O evento será realizado entre novembro e dezembro deste ano em Dubai, Emirados Árabes Unidos, e deverá reunir chefes-de-Estado de todo o mundo para discutir medidas para reverter ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
A declaração de Corrêa do Lago é uma menção direta à promessa feita em 2009 pelos países desenvolvidos de destinar US$ 100 bilhões até 2020 a países em desenvolvimento para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Estimativas apontam que a meta nunca foi cumprida e o prazo foi estendido para 2025.
Juntamente com outros ministérios, como o do Meio Ambiente, Corrêa do Lago é um dos responsáveis pela condução das negociações durante a COP-28. O evento é visto nos bastidores como uma espécie de vitrine para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e como uma preparação para a COP-30, que será realizada em Belém, em 2025.
Corrêa do Lago é diplomata de carreira e começou a atuar na área climática em 2001. Ele já atuou como negociador-chefe do Brasil para mudanças climáticas no passado, inclusive durante a Rio+20, em 2012. Antes de assumir a secretaria, no início deste ano, ele era embaixador do Brasil na Índia.
A delegação brasileira chegará a Dubai embalada por dados favoráveis em relação à queda do desmatamento na Amazônia (queda de 57% em setembro deste ano na comparação com o ano passado) e seguindo a linha adotada por Lula nos últimos meses, que colocou o meio ambiente como um dos pilares da sua política internacional. Um dos exemplos da diplomacia ambiental internacional de Lula foi realização da COP-30 em Belém, em 2025, já confirmada pela ONU.
Mas ao mesmo tempo em que o governo usa o meio ambiente para ampliar sua influência global, ele também deverá enfrentar o escrutínio da opinião pública internacional por continuar a apostar na exploração de petróleo, principal responsável pelas mudanças climáticas.
Nos últimos meses, setores do governo e a Petrobras vêm defendendo, por exemplo, a exploração de petróleo na bacia da Foz do Rio Amazonas, no litoral do Amapá, uma região considerada sensível da Amazônia.
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Corrêa do Lago evita dizer que a aposta do Brasil em combustíveis fósseis seja uma contradição da política ambiental do país. Segundo ele, o Brasil teria diversas opções no campo energético e poderia se adaptar ao que o mundo decidir em torno do futuro do petróleo.
Corrêa do Lago disse que o Brasil vai pressionar os países ricos a cumprirem a promessa de aportar US$ 100 bilhões por ano até 2025 (novo prazo para o compromisso feito em 2009) e defendeu que a China, maior emissora de gases do efeito estufa, não seja obrigada a contribuir para fundos internacionais para a mitigação dos efeitos da mudança climática. A cobrança para que a China faça parte desses fundos vem sendo feita por países ameaçados pelo aumento no nível dos oceanos e pelos Estados Unidos.
“Quando os países desenvolvidos pressionam a China, eles, na realidade, querem é diminuir a sua responsabilidade”, disse.
Confira os principais trechos da entrevista:
Quais são os principais pontos de interesse dessa COP para o Brasil? O que está em jogo para o Brasil?
André Corrêa do Lago – Entre todas essas negociações, provavelmente a mais importante é o que está sendo chamado de Global Stock Take, que a gente poderia traduzir por “balanço global”. O balanço global é um resumo do que os países conseguiram definir como seus principais êxitos e suas maiores dificuldades na implementação do Acordo de Paris. A importância desse balanço é que ele vai orientar o tema principal da COP 29, que será relacionada aos recursos financeiros para combater as mudanças climáticas […] Há, também, uma expectativa muito grande quanto ao tema de energia […] No nosso caso, o presidente Lula pretende abordar o tema das florestas sob o ponto de vista dos países florestais. Nós estamos conversando com outras importantes regiões florestais, como a bacia do Congo (na África) ou a Bacia do Mekong (na Ásia), para que os países florestais tenham uma posição tão próxima quanto possível nas discussões do clima.
Os dados oficiais apontam uma queda na taxa de desmatamento na Amazônia. Essa queda tem algum impacto na forma como o Brasil chega para a COP-28?
André Corrêa do Lago – O fato de o Brasil estar conseguindo combater a principal fonte das suas emissões é um exemplo extraordinário para o mundo. O Brasil conseguiu diminuir cerca de 50% das suas emissões em oito meses. É uma coisa gigantesca. O Brasil chegará à COP 28 como um país que assumiu o seu principal problema de emissões, que é desmatamento, e por isso pode cobrar dos outros para que eles resolvam os seus problemas. O principal motivo que provoca a mudança do clima é a energia (queima de combustíveis fósseis). Mais de 70% das emissões vêm daí. O tema do desmatamento é muito importante para o Brasil, mas a realidade é que, em termos globais, o desmatamento é menos de 10% das emissões do mundo. Acabar com o desmatamento é uma coisa importantíssima, mas não resolve o problema porque o que resolve é o que se vai fazer com as emissões oriundas da produção de energia.
Em que pese o fato de haver redução no desmatamento na Amazônia, setores do governo, e a Petrobras, que é controlada pelo governo, continuam apostando na exploração de combustíveis fósseis. Isso é uma contradição e de que forma isso afeta a imagem do Brasil em uma COP?
André Corrêa do Lago – Eu não usaria a palavra contradição por alguns motivos. O Brasil tem uma matriz energética entre as mais limpas do mundo. Temos praticamente 90% da nossa eletricidade vinda de energia renovável. Isso é uma posição que as maiores economias do mundo gostariam de ter. Essa posição nos permite ajustar uma questão também muito particular brasileira, que foi o fato de nós que temos descoberto muito petróleo relativamente tarde. É importante que haja esse debate dentro do Brasil sobre como nós vamos avançar.
Do ponto de vista global, se o petróleo extraído pelo Brasil for queimado aqui ou fora do país, ele contribuirá para o aquecimento global da mesma forma. Não é contraditório o Brasil querer ser líder na agenda climática ao mesmo tempo em que continua apostando em petróleo?
André Corrêa do Lago – É preciso levar em consideração várias coisas. Há países como a Noruega que são grandes produtores de petróleo e também são líderes na discussão sobre o combate às mudanças climáticas […] O problema é que a negociação de mudança do clima começou como uma discussão ambiental, mas se tornou tão importante e tão divisiva porque ela é essencialmente econômica. Todos os países do mundo têm setores que vão sofrer no esforço de combate à mudança climática. […] O essencial nesse debate com relação ao petróleo é lembrar que cada país tem que encontrar a sua forma de fazer. […] as escolhas têm que ser feita pelo próprio país, soberanamente, e não por imposição de outros interesses.
Os relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês) dizem que o mundo precisa, de forma rápida, reduzir o uso de combustíveis fósseis, o chamado “phase out” ou “phase down”. O Brasil vai apresentar alguma proposta de redução ou abolição dos combustíveis fósseis na COP-28?
André Corrêa do Lago – Não. Nesta COP não há espaço para isso.
Não há espaço por que o assunto não está maduro dentro do Brasil?
André Corrêa do Lago – Não há espaço porque o assunto não está maduro internacionalmente. Não há uma negociação para o “phase out” ou “phase down”. O tema não está na agenda de negociação dessa COP.
Faz diferença o Brasil liderar o debate de mudança climática em florestas, que respondem por 10% das emissões e não liderar o tema em relação à energia, que representa 70%?
André Corrêa do Lago – O Brasil é um país que tem várias opções. Outros produtores de petróleo não têm as opções que o Brasil tem. O Brasil vai ter muito mais capacidade de se adaptar às tendências que serão decididas internacionalmente por todos os países na comparação com outras nações.
Em 2009, os países ricos prometeram US$ 100 bilhões por ano até 2020 (o prazo foi ampliado para 2025) para combater os efeitos das mudanças climáticas, mas as estimativas apontam que esse valor nunca foi alcançado. Qual o tamanho do prejuízo global por não terem cumprido essa promessa?
André Corrêa do Lago – Essa é uma questão muito constrangedora para os países desenvolvidos, porque eles também estão divididos. Tem vários países envolvidos, como vários países europeus, por exemplo, que têm contribuído de maneira significativa em recursos. Mas há outros países desenvolvidos que não têm contribuído. Você acaba tendo uma disputa entre os países ricos. Eles se indagam: “Por que vou dar US$ 20 bilhões se um outro país, tão rico como eu, só está dando US$ 3 bilhões?”.
O não cumprimento dessa promessa afeta a credibilidade da COP e dos países desenvolvidos?
André Corrêa do Lago – Sim, afeta a credibilidade da negociação. E vários setores econômicos e vários países apostam nesse enfraquecimento da convergência sobre o assunto. Nós temos que resistir à tentação de culpar a COP por não haver resultados ou pelo fato de os resultados não estarem sendo eficazes. Isso só favorece quem quer enfraquecer as negociações.
Que países e setores estão, hoje, interessados em enfraquecer essas negociações?
André Corrêa do Lago – Em geral, você não tem países que são inteiramente contra ou inteiramente a favor das negociações. Os países estão um pouco divididos […] Tem setores refratários a essa agenda em todos os países do mundo.
O Brasil pretende pressionar os países ricos, de alguma forma, a cumprir a promessa dos US$ 100 bilhões?
André Corrêa do Lago – O Brasil vai, sim, pressionar de maneira muito significativa tanto no contexto do G77+China (grupo de 134 países em desenvolvimento e a China) e no contexto do BASIC (sigla para Brasil, África do Sul, Índia e China). Vamos pressionar, também, individualmente […] O Brasil será um dos principais porta vozes dessa decepção com os países ricos.
Países mais ameaçados pelo aumento no nível dos oceanos como pequenas ilhas oceânicas e outras nações como os Estados Unidos passaram a pressionar a China a contribuir para mecanismos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas porque o país é, hoje, o maior emissor de gases do efeito estufa no mundo. A China deveria contribuir para esses fundos?
André Corrêa do Lago – Não no contexto da convenção para o clima (COP) porque ela coloca, muito claramente, quais são as obrigações para os países desenvolvidos e para os países em desenvolvimento. Portanto, no contexto da Convenção, a posição da China é totalmente correta.
Mas a China é hoje o país que mais emite gases do chamado efeito estufa…
André Corrêa do Lago – Isso acontece porque ela é o país que mais cresce no mundo e o que mais diminuiu a pobreza. O que a China pode fazer são coisas fora do âmbito da Convenção. Quando os países desenvolvidos pressionam a China, eles, na realidade, querem é diminuir a sua responsabilidade. Se os países desenvolvidos cumprissem com o que eles se comprometeram, eles teriam muito mais moral para poder cobrar dos outros. Há vários países da União Europeia dizendo que os países desenvolvidos têm que chegar aos US$ 100 bilhões para ter a credibilidade de poder cobrar mais dos outros. Como vão cobrar dos outros sem cumprir a sua parte?
O governo recalculou suas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa (essas metas são conhecidas como NDC, sigla em inglês para Contribuição Nacional Determinada) e voltou aos parâmetros originais estabelecidos em 2015. Diante da emergência climática, ambientalistas argumentam que o Brasil deveriam apresentar metas mais agressivas. O Brasil vai indicar uma NDC mais ambiciosa nesta COP?
André Corrêa do Lago – Isso deverá acontecer apenas na COP-30, que é quando todos os países deverão apresentar metas mais ambiciosas […]Pode-se dizer que a atual NDC não foi um progresso, mas este governo está assumindo o compromisso de compensar tudo o que foi feito de errado nos últimos quatro anos. Estamos voltando ao que foi estabelecido no Acordo de Paris, mas não contávamos que teríamos quatro anos de retrocesso.
Qual seria o impacto que a eventual aprovação da exploração de petróleo na bacia da Foz do Amazonas teria na imagem do Brasil no momento em que o país tenta liderar o debate climático?
André Corrêa do Lago – Quando se fala em negociação climática, o que se espera do Brasil é efetividade no combate ao desmatamento e o petróleo não é visto como uma questão do Brasil.
O senhor não fez menção à extração na bacia da Foz do Amazonas…
André Corrêa do Lago – Esse é um tema extremamente importante na sociedade brasileira e que tem que ser amplamente debatido com conhecimento dos dados e seus possíveis impactos. A população do Estado do Amapá, por exemplo, conta com esses recursos para o seu desenvolvimento. O Pará também. No Brasil, temos um governo democrático, uma sociedade civil extremamente atuante e cientistas de alta qualidade para conseguirmos debater de uma maneira muito objetiva quais são as vantagens e desvantagens para o país de escolher um caminho ou outro.
Há algumas semanas, o senhor disse que a questão ambiental não poderia ser usada como pretexto para medidas protecionistas comerciais. Neste ano, a União Europeia enviou uma carta adicional ao texto do acordo comercial com o Mercosul que continha exigências e criava possíveis sanções focadas no cumprimento de metas ambientais. A União Europeia usou o tema ambiental para fins comerciais?
André Corrêa do Lago – O que aconteceu ali foi um acúmulo de erros táticos da União Europeia. Essa carta foi um erro tático na medida em que eles a divulgaram quando o governo já era outro, e um governo que já tinha apresentado plena disposição em mudar a política ambiental anterior. A União Europeia tem uma burocracia muito eficiente, mas que cometeu um erro tático nesse caso […] Nenhum país do mundo gosta de parecer estar sendo forçado a fazer alguma coisa. Há um desejo muito claro deste governo em melhorar os indicadores ambientais, mas no momento em que outros pedem para você fazer, isso diminui a sua boa vontade de fazer algo que você tinha toda intenção de realizar.
Na entrevista que o senhor deu recentemente ao jornal Valor Econômico, o senhor disse que a pauta ambiental não poderia ser usada para fins comerciais. Neste caso concreto, foi isso o que aconteceu?
André Corrêa do Lago – Nossas dificuldades na área agrícola com a União Europeia são famosas e antigas. Como em todos os países do mundo, os setores que vão perder no esforço de combater a mudança do clima são muito mais ativos do que os setores que vão ganhar. Esses setores que temem a competitividade do Brasil foram ativos dentro da União Europeia para procurar criar situações complexas para os produtos brasileiros ou do Mercosul. Nesse sentido, a interpretação de que há uma dimensão essencialmente comercial (no envio da carta) pode ser legítima, mas é um debate muito complexo porque há vários setores da União Europeia que querem que os produtos brasileiros aumentem sua participação no mercado europeu. Eu não creio que haja uma intenção política.
Por Leandro Prazeres/BBC News em Brasília