Comemoração pela Lei Maria da Penha no Plenário reuniu autoridades dos Três Poderes, que defenderam mais medidas de combate à violência e em defesa dos direitos das mulheres
Roque de Sá/Agência Senado›
Sessão especial no Plenário do Senado celebrou o aniversário de 17 anos da Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006), que leva o nome da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de tentativa de feminicídio cometida pelo seu marido, que a deixou tetraplégica. O agressor respondeu ao processo em liberdade e só foi preso 20 anos depois. Após várias tentativas, sem sucesso, de projetos de lei para coibir a violência contra as mulheres, o caso Maria da Penha estimulou a apresentação de nova proposta legislativa sobre o tema, em 2004. Enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, o projeto de lei (PLC) 4.559/2004 virou lei dois anos depois.
A homenagem foi proposta pela senadora Leila Barros (PDT-DF), que classificou Maria da Penha Maia Fernandes, ativista pelo direito das mulheres, “uma heroína dos nossos tempos”. Os convidados para a sessão especial ressaltaram a importância da lei em defesa da mulher, que conquistou reconhecimento internacional, mas defenderam mais efetividade e melhor aplicação pelo Estado.
Apesar dos avanços e da contribuição da Lei Maria da Penha, Leila Barros ressaltou que o Brasil ainda apresenta “números vergonhosos” quanto à violência contra a mulher. Em 2022, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, quase 250 mil mulheres registraram boletins de ocorrência denunciando agressões sofridas no ambiente doméstico, o que representa crescimento de 2,9% em relação a 2021. Já os feminicídios aumentaram 6,1%, alcançando 1.437 vítimas.
“A Lei Maria da Penha é fundamental na luta contra a violência doméstica, mas ainda há desafios a serem enfrentados e que podem contribuir para garantir sua plena efetividade e erradicar esse tipo de violência. Não basta a lei e seus aprimoramentos, são necessários também investimentos em conscientização, educação e ações integradas entre os diferentes setores da sociedade. É imprescindível a promoção de uma cultura de respeito e igualdade de gênero. A Lei Maria da Penha não é apenas uma legislação, é um farol de esperança, um compromisso com a dignidade e um voto de confiança na igualdade e no respeito, é a promessa do nosso país de que cada mulher deve viver livre de violência, com a segurança de que sua voz será ouvida e o seu valor, reconhecido. Mas a lei sozinha não basta, ela precisa de nós, de cada cidadão, para ser plenamente efetiva. Essa luta não é só das mulheres, ela é de toda a sociedade “, afirmou a senadora.
Avanço civilizatório
A sessão foi aberta pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que condenou a violência doméstica, defendeu a participação da mulher na política e disse que o avanço civilizatório passa pelo fortalecimento das pautas inclusivas e protetivas dos direitos fundamentais femininos, que se tornaram prioritárias no Congresso Nacional. Em 2021, ressaltou, o Senado deu um passo importante no sentido de ampliar a participação feminino no Poder Legislativo, por meio da aprovação do projeto de resolução (PRS) 6/2021, que criou a Bancada Feminina, hoje liderada pela senadora Daniela Ribeiro (PSD-PB).
“Tenho certeza de que o Parlamento somente tem a ganhar ao ampliar a representatividade das mulheres nas casas legislativas, basta verificar o exemplo da atuação destacada e competente das bancadas femininas do Poder Legislativo, bem como o número de projetos aprovados que tratam da agenda feminina nas Casas Legislativas”, afirmou Rodrigo Pacheco.
Dados da Secretaria-Geral da Mesa apontam que o Senado aprovou 70 projetos da pauta feminina somente nos últimos três anos. Desses projetos, 12 modificaram a Lei Maria da Penha, para torná-la mais efetiva. Entre os textos que já se transformaram em norma jurídica, Rodrigo Pacheco destacou o que determina a concessão sumária de medidas protetivas de urgência às mulheres a partir de denúncia de violência apresentada e a determinação da aplicação da legislação relacionada à violência doméstica independentemente da causa ou da motivação das agressões e da condição do ofensor e da ofendida (Lei 14.550, de 2023).
Aplicação da lei
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ressaltou a importância da Lei Maria da Penha, mas lamentou a ocorrência de falhas na sua implementação.
“Essa é a grande realidade que temos que discutir aqui. Nós temos uma lei perfeita, que institui juizados especializados de atendimento às mulheres, mas nós não chegamos a 200, a 150 juizados de violência contra as mulheres num país com 5.600 municípios. Nós não temos delegacia especializada na maioria dos municípios, nós temos cerca de 500 delegacias especializadas de atendimento a mulher no nosso país. Nós temos 60 casas-abrigos, nós temos 129 centros de referência para atender as mulheres em situação de violência, nós temos 12 Casas da Mulher Brasileira. Se de um lado precisamos comemorar uma lei que tem salvado vidas” são mais de 390 mil medidas de urgência deferidas nesse país —, isso não é suficiente. Vivemos o desafio de [fazer] que o ódio contra as mulheres diminua, de fazer com que as empresas e as pessoas se envolvam e não aceitem com naturalidade os crimes que são colocados — afirmou.
Maria Laura da Rocha, secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores, disse que a Lei Maria da Penha é um marco da maior relevância, resultado de esforço conjunto de muitos atores da sociedade brasileira, do governo e da sociedade civil a partir de denúncia apresentada em 1998 por Maria da Penha Maia Fernandes, frente à omissão do Estado na defesa dos seus direitos.
— O caso Maria da Penha demonstra como o sistema internacional de promoção e proteção dos direitos humanos pode ser eficaz frente à omissão estatal e contribuir para melhorar as sociedades dos países que reconhecem a sua competência, como é o caso do Brasil. Sigamos em frente no processo de construção de mais direitos para mais pessoas em toda a sua diversidade. Somos todas e todos gratos à conquista que nos proporcionou Maria da Penha em sua luta pela afirmação e garantia de seus direitos fundamentais — afirmou.
Violência psicológica e patrimonial
Líder da Bancada Feminina, a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) defendeu a realização de campanhas antiviolência, além de investimentos na estrutura de defesa dos direitos das mulheres. Ela também lamentou a ocorrência da violência psicológica, “de tipificação criminal difícil, que culmina na violência física e derruba a mulher na estrutura moral e emocional”.
A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) ressaltou a ocorrência de violências patrimoniais e políticas cometidas contra as mulheres. Ela defendeu a aprovação de projeto de sua autoria (PL 2.452/2019), que combate a fraude na partilha de bens, o qual tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), bem como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2022, que cria condições para a ascensão de mulheres aos cargos mais altos do Judiciário. Soraya Tronicke também apelou ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para que promova a indicação de mulheres para o Supremo Tribunal Federal (STF).
A senadora Ivete da Silveira (MDB-SC) afirmou que a violência contra a mulher deve ser combatida continuamente.
— É um problema endêmico, afeta o mundo inteiro, inclusive os países mais desenvolvidos, um tipo de violência que está entranhado em nossa cultura, uma prática nefasta que até pouco tempo atrás era visto como algo normal pela sociedade, mas que o Brasil tem combatido em todas as suas frentes com campanhas de educação para os jovens, criação de órgãos de apoio e legislação específica mais rigorosa sobre o tema — declarou.
Procuradora da Mulher na Câmara, a deputada Soraya Santos (PL-RJ) afirmou que a celebração da Lei Maria da Penha “traz um sentido cívico que precisa ser reverenciado em nome da mulher que transforma suas dores em luta”.
Agressões diárias
Coordenadora adjunta da bancada feminina na Câmara, a deputada Iza Arruda (MDB-PE), apontou a ocorrência de 822 mil casos de estupros por ano, dos quais mais de 80% das vítimas são mulheres, de acordo com números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Isso significa que a cada minuto duas mulheres são estupradas, e apenas oito por cento dos casos chegam ao conhecimento da polícia, afirmou a deputada.
A senadora Margareth Buzetti (PSD-MT) disse que não bastam leis de combate à violência doméstica, tendo em vista a ocorrência diária de agressões praticadas contra a mulher, que representam “atos covardes e nojentos de homens que praticam a coisificação da mulher; para esses criminosos ela deixa de ser um ser humano e vira um objeto, uma propriedade, é como um prato que ele joga no chão, quebra e joga no lixo”.
A senadora Jussara Lima (PSD-PI) ressaltou que a Lei Maria da Penha é um marco crucial contra a violência doméstica no Brasil, que não apenas denuncia a brutalidade enfrentada pelas mulheres, mas proporciona justiça e transformação social. Ela afirmou que a a violência doméstica é um problema profundo, enraizado na sociedade, em que as mulheres sofrem em silêncio, muitas vezes sem condições de escapar de relacionamentos abusivos. A senadora observou que, entre 2015 e 2022, foram registradas 460 mortes violentas de mulheres no Piauí, 219 das quais classificadas como feminicídio. Em 2021, houve aumento de 19% em relação à frequência absoluta de feminicídios, bem como aumento de 25% de mortes violentas intencionais de mulheres.
Juíza-auxiliar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Renata Gil ressaltou a atuação das mulheres no Parlamento, mas lembrou que muitas mulheres ainda sofrem agressões em seus locais de trabalho e nos próprios lares. “Só teremos mulheres ocupando todos os espaços necessários para a mudança se tivermos um quadro diferente de combate à violência. Esse quadro só vai alterar quando todos nós, juntos, estivermos trabalhando nessa causa”, afirmou.
Representante da ONU Mulheres no Brasil, Anastasia Divinskaya disse que a Lei Maria da Penha “não é apenas uma lei, é uma referência internacional para milhões de mulheres e meninas de todo o Brasil, representa a diferença entre a vida e a morte, é um marco histórico e glorioso, uma vitória memorável, um ganho normativo precioso para o movimento das mulheres e um enorme passo em frente em nome de direitos de mulheres e meninas”.
Espaços de poder
A senadora Augusta Brito (PT-CE) saudou as parlamentares presentes em Plenário e apontou as dificuldades para ocupação dos espaços de poder pelas mulheres. Ela ressaltou que a Lei Maria da Penha lei foi criada para evitar a agressão e prevenir a violência, para que outras mulheres não sejam vítimas de feminicídio.
Procuradora da Mulher no Senado, a senadora Zenaide Maia (PSD-RN) disse que a Lei Maria da Penha é um marco na legislação brasileira. Ela ressaltou que a superação da violência contra a mulher somente será possível com a participação ativa de toda a sociedade.
Reitora da Universidade de Brasília (UnB) e primeira mulher a ocupar esse posto na instituição, Márcia Abrahão disse que somente a educação poderá contribuir com a mudança de mentalidade em relação à violência doméstica. “Temos várias leis, temos que conseguir que essas leis sejam aplicadas rigorosamente, mas nossas instituições têm muito que contribuir com a mudança de mentalidade de nossa sociedade”, afirmou.
Diretora-geral do Senado, Ilana Trombka ressaltou que a Lei Maria da Penha contribuiu para o surgimento de outras normas jurídicas de proteção específica às mulheres. “É claro que a Lei Maria da Penha precisa ser aperfeiçoada, e ser inclusive melhor implementada, mas, simbolicamente, ela é o ponto primeiro que reconhece a mulher como um ser de direitos pela sua condição de mulher”, disse.
Desumanização
A deputada Erica Kokay (PT-DF) disse que a Lei Maria da Penha é um marco sob vários aspectos porque fala de promoção, proteção, responsabilização e da reparação de políticas públicas de atenção e atendimento ao próprio agressor. “A violência doméstica […] vai sendo reproduzida e significa um processo muito profundo de desumanização, arando o terreno para o feminicídio”, afirmou.
Ativista do Instituto Nós por Elas, Luiza Brunet afirmou que muitas mulheres no Brasil e no mundo ainda não reconhecem a violência que sofrem dentro de suas próprias casas.
“Eu sofri violência doméstica desde pequena, porque eu sou filha da violência doméstica. Eu assistia meus pais se digladiando, meu pai era alcoólatra, tinha problemas mentais, não tinha emprego certo, agredia minha mãe e usava arma. Sofri uma violência sexual aos 12 anos de idade quando eu trabalhava em uma casa de família, no subúrbio do Rio de Janeiro, e uma sequência de outras violências, com que eu fui me deparando ao longo da minha vida, até os 54 anos de idade, quando eu sofri a própria violência doméstica e decidi mostrar a minha cara para a sociedade brasileira. E hoje eu me sinto muito responsável por essa atitude, porque eu tive uma revitimização muito pesada e eu não desisti. Nenhuma mulher deve desistir de procurar os seus direitos”, concluiu.
Fonte: Agência Senado