Alex Araújo, superintendente de Finanças e Mercado de Capitais do Banco do Nordeste
O alto grau de comprometimento da renda das famílias brasileiras com dívidas e seu reflexo no nível de inadimplência foi tema da campanha presidencial e está na mesa de trabalho do governo, que discute as bases do programa Desenrola. Para Alex Araújo, superintendente de Finanças e Mercado de Capitais do Banco do Nordeste – que já trabalhou como superintendente de Microcrédito do Banco – uma solução emergencial é importante para aliviar a situação dessas famílias, mas também é preciso retomar a agenda de inclusão bancária, capitaneada principalmente pelo Banco Central, para uma melhora estrutural no mercado de crédito para pessoas físicas.
A situação de endividamento das famílias brasileiras já preocupava em 2022 – em nossa última conversa, tratamos da iniciativa do governo anterior em lançar crédito consignado atrelado ao programa de transferência de renda – , e os dados se mantém alarmantes. Como avalia a iniciativa do governo com o Desenrola, de acordo ao que já foi anunciado do programa?
De fato, os indicadores de endividamento e inadimplência ainda continuam resistentes. No caso do financiamento das famílias brasileiras, temos um problema estrutural que é a falta de mecanismos de financiamento de longo prazo. As dívidas são todas de curto prazo, o que as obriga a fazer uma rolagem muitas vezes com instrumentos muito caros. Isso pesou bastante nesta retomada da pandemia, porque as taxas de juros subiram bastante – não falo tanto da Selic, mas da curva de juros, que tem a ver com algo mais estrutural da economia –, e isso foi amplificado pelo problema de endividamento das empresas. Depois da crise das Lojas Americanas a inibição do crédito para empresas tirou a própria capacidade que estas têm de financiar seus consumidores. Então, observou-se uma manutenção da situação do estoque de endividamento, e rareamento e encarecimento de novos instrumentos de dívida. Isso criou uma perspectiva muito ruim, especialmente para aquelas ações de consumo ligadas ao financiamento. O resultado das liquidações deste ano, em que se destacam linha branca, eletroeletrônicos, foi ruim, porque depende desse financiamento. Isso está colocando a economia dentro de uma área de marasmo, porque do lado da empresa você não consegue estimular o investimento, e do lado do consumidor você não consegue fazer com que ele saia do consumo básico e necessário para a sobrevivência. Essa é uma situação delicada que envolve essa questão estrutural, de ter uma perspectiva mais favorável que permita redefinir a curva de juros. Apesar de na semana do anúncio da proposta de nova regra fiscal a curva de juros ter caído um pouco, está longe de ser um cenário que permita a tomada de decisão de médio e longo prazo.
O Desenrola tende a ser oportuno, mas parece que o governo ainda não conseguiu chegar a uma base sustentável para isso. Se tomarmos como base um valor de R$ 10 bilhões para o fundo de garantias, e levando em conta que esses fundos normalmente usam a taxa média de risco daquele público alvo que ele quer – no caso, a inadimplência média das pessoas físicas no Brasil fica em torno de 5% a 7% –, isso geraria uma capacidade de alavancagem em torno de quatro vezes o valor do fundo. Ou seja, R$ 40 bilhões, que não abarca a dimensão do endividamento que temos (o objetivo anunciado pelo governo é o de renegociar R$ 50 bilhões em dívidas, abrangendo 37 milhões de CPFs).
Não tenho mais detalhes para analisar o programa Desenrola, mas provavelmente terá capacidade de impacto de curto prazo, dado o atual nível de endividamento das famílias. Não deverá ser uma política continuada, devido ao alto custo que terá. A solução estrutural, de fato, é melhorar a questão da renda, o que passa por uma retomada da economia e uma revisão do mercado de trabalho. Apesar dos empregos terem voltado, uma grande parte das ocupações foram de menor qualidade, de menor salário. Com isso, o mercado de trabalho aquecido não foi suficiente para retomar perfil de consumo das famílias. E, olhando para o mercado de crédito, hoje vivemos esse embate da recomposição do marco fiscal, pois dificuldade de visualização do que efetivamente essa ferramenta garantirá de controle para o endividamento do setor público fez com que a curva de juros subisse muito. A taxa de juros real de longo prazo está num patamar alto, acima de 7% ao ano real. E isso praticamente travou as decisões de endividamento e investimento. Bem como o financiamento de bens de consumo duráveis, por exemplo. A paralisação da atividade em algumas montadoras de automóveis ilustra isso. E essa dificuldade já está chegando aos semiduráveis.
Tratando-se do ponto de vista estrutural, qual o desafio?
Olhando para a taxa de juros, ela é formada basicamente por três componentes: 1- o custo básico do dinheiro (curva de juros); 2- um componente de custo operacional – nesse ponto o Brasil avançou muito com as fintechs, que hoje domina o mercado de crédito consignado uma boa parte é operada por fintechs; 3- e a própria formação do spread do risco de crédito, que no mundo avançou a partir das mudanças microeconômicas provocadas pelo BC. No caso do Brasil, houve mudanças como o cadastro positivo e o open banking, mas ainda não colhemos totalmente esses benefícios. O próprio cadastro positivo, que é um pouco mais antigo, ainda está muito restrito a transações bancárias e de grandes grupos do comércio varejista. Precisamos acelerar essa agenda para ter mais informações dos consumidores que permitam que o trabalho de análise de crédito se amplie. Hoje, o sistema ainda nivela pela média e grosso modo o cliente que é adimplente paga pelo inadimplente. É uma ineficiência que acaba penalizando aquele que tem bom hábito de pagamento.
Hoje vejo necessidade de a gente melhorar essa expectativa da curva de juros. Esse custo aumenta muito na medida em que você entra no mercado de varejo. E no outro extremo temos essa necessidade de continuar a agenda que em grande parte é conduzida pelo BC, além de e melhorias microeconômicas que permitam melhor precificação de crédito. O open banking tem uma agenda que precisa ser acelerada para permitir essa troca de informações. Todas as outas soluções serão conjunturais. Por isso, é fundamenta atuar nos mecanismos que são estruturais: curva de juros e melhoria da infraestrutura econômica.
Recentemente, visitei o Peru para estudar o mercado de microcrédito. É um dos créditos de varejo mais complexos de operar, devido à análise de risco de credito e custo de transação. Lá, entretanto, essa linha já representa 20% do total do crédito do sistema financeiro, enquanto no Brasil ainda é 0,2%. E grande parte desse crescimento se deve a melhorias microeconômicas que permitiram melhor seleção do tomador de crédito.
O que, então, explica o sucesso do Banco do Nordeste no microcrédito, e por que é um caso isolado?
Quando se trata de problemas complexos, o sucesso em geral é decorrente de uma conjunção de fatores que deram certo. Acho que no caso do Banco há um importante fator que é o modelo de atendimento, que envolve muita orientação financeira. A orientação financeira é essencial, porque o próprio cliente toma consciência de que há uma diferença entre o valor que ele precisa, e de quanto ele pode pagar, que em geral é muito menos. Ao compreender essa perspectiva, trabalha-se a questão da dívida de forma mais orgânica. Entre os clientes do Banco não há problema de superendividamento por conta disso. Outro aspecto essencial é a figura do agente de crédito, cujo papel não se conseguiria reproduzir dento do modelo de atendimento de uma agência bancária, muito menos pelo celular. A primeira fase de atendimento exige uma atenção presencial. Começa com uma série de reuniões, apresentações, e só depois que o cliente passa dessa fase é que se consegue migrar o atendimento para o digital. Também é muito importante, no caso de novos entrantes no sistema, o modelo de garantia solidária, que traz um complemento aos modelos matemáticos que utilizamos na análise do Crediamigo, linha de microcrédito do Banco do Nordeste. Isso é fundamental, porque você está pedindo para uma pessoa que conhece aquele tomador de forma mais ampla do que uma base numérica pode alcançar para que se responsabilize pelo pagamento. Depois que o cliente ganha uma determinada escala, aí se pode substituir por outros modelos tradicionais. Então tem essa combinação de fatores – o agente de crédito, a sistemática da orientação financeira, o crédito solidário, a concessão de crédito pela capacidade de pagamento. Essa combinação acabe sendo boa parte da explicação do sucesso. E que é difícil de ser encontrada em bancos tradicionais, que buscam encaixar o modelo em suas práticas habituais, seu modelo de análise de crédito. As próprias exigências que o Banco Central pediu ao longo das últimas décadas criou uma cultura que é muito diferente da cultura de microcrédito.
Quais os princípios que, em sua opinião, deveriam guiar as políticas de crédito que o governo venha a lançar?
Estruturalmente, considero importante a harmonia na relação entre Banco Central e governo. Tivemos uma evolução acelerada do sistema bancário brasileiro nos últimos anos – que começou com iniciativas que começaram há mais tempo, desde o lançamento do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado, em 2005, no governo Lula, o Programa Cidadania Financeira no governo Dilma Rousseff –, com o processo de digitalização impulsionado pelo Banco Central. Com isso, facilitou-se o ambiente para desenvolvimento das fintechs, estimulando a concorrência e a inovação financeira, e com isso a inclusão bancária. O BC tem papel fundamental nessa agenda hoje, daí a importância dessa coordenação entre a instituição e o governo. O aumento da competição nesse mercado é chave. Hoje, quando se olha o varejo, cinco bancos ainda dominam quase 90% do mercado. É importante ter mais players, tanto pela competição em si quanto pelo estimulo à inovação. Isso, entretanto, envolve questões políticas e outras decisões de governo – sobre quais políticas públicas serão prioritárias: tecnologia? Desenho dos mecanismos de financiamento? – cujo ambiente de curto prazo ainda não sinaliza um encaminhamento.
*Com informações: Blog da Conjuntura Econômica